Gratidão e esperança na educação: os 90 anos da Escola Perpétuo Socorro

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Essa história começou a ser escrita em alemão, ainda nos tempos de 1ª Guerra Mundial (1914-1918), quando um cidadão europeu foi parar nas terras vermelhas da ainda jovem Venâncio Aires, onde já cresciam muitos ervais. Foi na segunda década do século XX que esse homem de origem germânica começou a alfabetizar crianças da comunidade católica de Linha Travessa. Sobre ele, sabe-SE apenas o nome: Hans Demberger. Quando nasceu, quando morreu, se teve família por aqui… Não há informação. Mas fato é que ele é considerado o precursor da trajetória de uma das escolas mais antigas de Venâncio e que completa, oficialmente, 90 anos na próxima sexta-feira, dia 15 de dezembro. As linhas a seguir contam um pouco da história da Escola Estadual de Ensino Fundamental Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.

Hans Demberger (sentado à esquerda) começou a alfabetizar crianças em Linha Travessa nos anos 1920 (Foto: Arquivo pessoal)

Aulas na capela e trocas de merenda

Onde ‘lehrer’ (professor) Demberger começou as aulas, não há memória viva para confirmar, mas durante a virada dos anos 1920 para 1930, as crianças se reuniam nas terras de Reinoldo Haackenhaar (ao lado do atual Salão Gigante). Depois disso, passaram para a capela, ao lado do atual prédio. Na igrejinha construída em 1947, Adelmo Inácio Hillesheim, 75 anos, frequentou aulas entre 1957 e 1959, sob os ensinamentos da professora Therezinha Kuhn, que também foi diretora e, em 1963, fundou o Conselho de Pais e Mestre (CPM).

Então morador de Linha Arroio Bonito (localidade de Mato Leitão), Hillesheim iniciou os estudos na Escola Santa Inês, que funcionava próximo ao atual prédio da Prefeitura da Cidade das Orquídeas. Todos os dias, eram quatro quilômetros sobre o lombo do cavalo para chegar lá, até que um dia, uma queda do animal mudou tudo. “Aí vim para Travessa, que ficava bem mais perto de casa e eu ia a pé”, lembra o motorista de caminhão aposentado.

Ele conta que ainda é da época da lousa de pedra (ardósia) e que era difícil apoiá-la sobre a base estreita dos bancos da capela. Sobre as lembranças da infância, Hillesheim lembra dos jogos de futebol com bolas improvisadas com sacos e barbantes, e das trocas de merenda entre os colegas. “Geralmente todo dia cada um levava a mesma coisa. Eu tinha pão frito com ovo. Gostava de trocar por frutas com os colegas, porque não era comum em casa.” Quando a mãe liberava uns trocados, o destino eram bolachas em forma de palitos, vendidas no comércio de Reinoldo Haackenhaar.

Adelmo Hillesheim estudou na capela, no fim dos anos 1950 (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

A devota Rosina

Adelmo Hillesheim também conviveu com Rosina Schauenberg, que no início da década de 1930 deu seguimento ao trabalho do alemão Hans Demberger. É ela, aliás, quem assina a ata nº 1, de 15 de dezembro de 1933. Esse registro narra o dia em que quase 40 alunos foram submetidos a um exame proposto pela Prefeitura de Venâncio para avaliar a condição dos estudantes e da própria Rosina, na chamada ‘instrução primária’. Por isso, essa virou a data de início oficial da escola.

Muito religiosa, Rosina Schauenberg também é a responsável pelo nome do educandário, já que era devota de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – identificação que está atrelada à instituição desde o início da década de 1960. Ao longo das décadas, teve variações como ‘Escolas Reunidas’, ‘Escola Rural’, ‘Escola Estadual de 1º Grau’ até ‘Escola Estadual de Ensino Fundamental’, mas sempre seguido de um dos nomes conferidos pelos católicos à Virgem Maria.

Resgate histórico

• A Escola Perpétuo tem boa parte da história registrada em textos transcritos em máquina de escrever e dezenas de fotografias em preto e branco ou já amareladas pelo tempo. Muito dessa preservação se deve a Angela Maria Federhen e Eliane Claudete Stein (assim assinavam os nomes em 1988), que fizeram o resgate histórico da Perpétuo para um trabalho de graduação, na então Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul (Fisc), há 35 anos.

Uma obra pelas mãos e o suor da comunidade

Em 1961, as crianças saíram da capela e foram estudar num prédio próprio, que tinha duas salas de aula. A estrutura ficava onde é atual pracinha. Pouco mais de 20 anos depois, outra obra marcou a história do educandário: um novo e amplo prédio. Eram tempos da professora Rejane Rüdiger Pastore (neta de Rosina Schauenberg), que trabalhou na escola por 26 anos e de 1981 e 1988 estava na direção. Na época era filiada ao PDS, mesmo partido do então governador Jair Soares. “Isso facilitou o trânsito com o Estado na busca de recursos para a escola e quem ajudou muito foi o deputado Luiz Fernando Staub, o Ratinho”, lembra Rejane, hoje com 69 anos.

Atual prédio foi construído em 1982 e contou com ajuda da comunidade (Fotos: Arquivo pessoal)

A professora aposentada conta que foi recebido apenas dinheiro para compra do material de construção. “Reunimos o CPM e ficou combinado que cada um, professores e pais, pagaria um pouco ou ajudaria com dias de serviço. Essa obra tem o suor dos pais, alunos, professores e da comunidade.” Rejane conta ainda que o pai, Silvério Rüdiger (que tinha a ervateira próximo da escola e que dá nome à estrada do educandário), cedeu funcionários para ajudar na construção. “Depois de pronto, tinha mais um problema: onde puxar água? Foi resolvido graças ao Emílio Becker, que tinha um poço bom nas terras e disse ‘Água não se nega para ninguém’. Por isso essa obra de ampliação é um orgulho, porque ela só foi possível pelas mãos da comunidade”, destaca Rejane, também conhecida pelo trabalho à frente da Escola do Chimarrão.

Em 2006, a cunhada dela, professora Nilce Rüdiger, hoje com 69 anos, era a diretora quando foi inaugurado o ginásio. Nilce também foi a responsável por providenciar uma grutinha de Nossa Senhora em frente à escola e grande incentivadora da parte cultural, com grupos de dança e coral.

O voo da águia

O logotipo da escola foi criado em 1985 e desenhado a partir de uma ideia de Rejane Rüdiger Pastore. Tem os ramos verdes, simbolizando a cultura da erva-mate (carro-chefe da localidade de Linha Travessa por muitos anos); o livro e a pena, como materiais escolares; e uma águia com o sol ao fundo. “Esse voo, sempre em direção ao sol, significa ministrar aos alunos a busca do saber e que eles sempre perseverem para concretizarem seus sonhos”, explica a autora da ideia.

Há 38 anos, quem fez o desenho foi Osmar Payeras Bender, artista conhecido em Venâncio como Tchutcho (já falecido). Um sobrinho de Rejane, Ronei Pappen, reproduziu os traços para um quadro maior, que está exposto na escola.

Ex-diretora Rejane Rüdiger Pastore foi a idealizadora do logo da escola (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)
Grazieli, ex-aluna, e a filha Jhulia, atual aluna, fazem parte da história da escola (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Na garupa da bicicleta

A empresária e funcionária pública Grazieli Rüdiger Camargo, 35 anos, fez todo o Ensino Fundamental na Perpétuo, onde também estudou o irmão e o pai. Ela lembra com carinho de Adelina Barden, a merendeira que preparava ótimas galinhadas e carreteiros, e a qual ela chamava de tia, já que também eram vizinhas.

Grazieli destaca que adorava estudar e nunca faltava, nem quando quebrou o pé, com cerca de 7 anos, e coube à mãe levá-la na garupa da bicicleta, todos os dias. Hoje, ela acompanha a filha Jhulia, 13 anos, aluna do 7º ano. Em 2021, no 5º ano, Jhulia venceu um concurso estadual de poesias com a temática sobre o bicentenário de Anita Garibaldi. “E em 2024 vem minha caçula”, revela Grazieli, se referindo à Sofia, 6 anos, que também será matriculada na Perpétuo.

Os desafios para o futuro

A Perpétuo Socorro tem 76 alunos, 15 professores e três funcionários. Além de Linha Travessa, os estudantes vêm de Vila Flores e Vila Santa Emília e cerca de 70 deles usam transporte escolar. Essa possibilidade é considerada uma conquista pela diretora Liege Beatriz Machry Regert, 58 anos. “Se não fosse o transporte, possivelmente as crianças estariam em outras escolas”, avalia. A instituição atende somente pela manhã e as turmas são multisseriadas, à exceção do pré e do 1º ano. Para Liege, se houvesse o tempo integral, o número de alunos seria maior. “Acredito que seria importante e, para futuro, acho que a escola tende a ser municipalizada”, projeta.

“É uma história de gratidão pelos que passaram, acreditaram e construíram a escola. E também uma história de esperança no futuro, na educação e no conhecimento que estão sendo construídos.”
LIEGE BEATRIZ MACHRY REGERT – Diretora da Escola Perpétuo Socorro (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Liege é professora de Português e Inglês e trabalha na Perpétuo desde 2007. Assumiu a direção em 2015. “Agradeço muito por ter ‘caído’ aqui. A escola tem uma história linda, composta por pessoas, e fico feliz de fazer parte.” Na gestão dela, foram feitas melhorias no prédio, como, por exemplo, a reestruturação na rede elétrica, a troca do telhado e a pintura externa.

Na próxima sexta, 15, data dos 90 anos da escola, haverá um evento festivo no ginásio, a partir das 19h30min. Foram convidados pais, ex-alunos, ex-professores e a comunidade para um momento de homenagens e celebração da história do educandário.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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