Ela está localizada numa das pontas do mapa venâncio-airense. Está mais perto de Boqueirão do Leão do que do Centro de Venâncio Aires e a distância da sede do seu próprio município – 45 quilômetros – é três vezes maior do que da cidade vizinha. Ela também é, entre públicas e privadas, a menor escola de Venâncio Aires e tem, atualmente, apenas 24 crianças. Trata-se da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) João Cândido de Moura, de Linha Marmeleiro, na região serrana da Capital do Chimarrão. Uma localidade onde, apesar das distâncias geográficas e do tamanho da instituição, a educação segue prioridade e mantém vivo o elo com a comunidade.
Antes de o sol nascer
Entre os mais de 10,4 mil estudantes da rede pública municipal e estadual de Venâncio Aires, entre Educação Infantil e Ensino Fundamental, 0,23% frequenta a Escola João Cândido de Moura. São 24 alunos entre 4 e 10 anos, do pré A ao 5º ano, que estudam em Linha Marmeleiro. A maioria dessas crianças mora na localidade batizada assim por causa do pés de marmelo, mas o zoneamento também abrange Linha Datas, Linha América e Alto Sampaio, na parte mais alta de geografia venâncio-airense.
Devido à logística do transporte escolar, a maior parte das crianças chega muito cedo na escola, por volta de 6h45min. Foi nesta hora que a reportagem da Folha do Mate também chegou no educandário, numa quinta-feira, depois de percorrer 45 quilômetros entre o Centro de Venâncio até a escola, pela sempre desafiadora ERS-422 (1h15 de viagem).
Como a aula começa às 7h15min, as crianças têm ‘ricos’ 30 minutos para brincar à vontade. Se ocupam em duelos de futebol com goleirinhas feitas com pedras ou chinelo de dedo, na pracinha ou no pula-pula no saguão. Isso, enquanto os raios de sol ainda fazem força para aparecer de trás dos morros e por entre os matos de eucalipto.

Turmas multisseriadas
No início da aula, ao invés da sineta, a voz da professora e diretora Franciele Bohnenberger é suficiente para convocar todos para aula. Dezoito a acompanham para uma sala e os outros seis do pré vão para a outra sala, com a professora Ednea Andrade Santos.
Profe Frã, como é conhecida, trabalha em Marmeleiro há mais de dois anos e é unidocente, ou seja, em sala de aula, é a única professora para crianças de cinco níveis diferentes. Com as turmas de 1º a 5º anos divididas por fileiras, Frã também divide o quadro para passar os respectivos conteúdos. Além de professora, ela também é a diretora da escola. Aos 37 anos, essa rotina não é novidade para a pedagoga, já que tem experiência trabalhando com turmas multisseriadas (nos tempos da Vidal de Negreiros, em Linha Julieta, já fechada) e com a gestão, pois integrou a equipe diretiva da Emef Alfredo Scherer. “Acho que o maior desafio é garantir a mesma qualidade de ensino para essas cinco turmas como se fosse ministrar para uma só.”
Atualmente, Franciele cumpre 40 horas na escola e as tardes são dedicadas à gestão dos recursos humanos, merenda, transporte, além do planejamento pedagógico. Faz isso na sala da diretoria, que também é secretaria, biblioteca e depósito, o que é comum em outros educandários menores. Frã é moradora da parte urbana de Venâncio e, para ir trabalhar, os dias se dividem em viagens de carro ou ônibus. Sobre o porquê de trabalhar tão longe de casa, ela é direta: “O que mais me orgulha é ver a criança se desenvolvendo. É isso que motiva qualquer professor. Acredito muito em propósito, de que através da educação se faz a diferença num lugar. Acho que aqui é onde precisam de mim e onde devo estar e por isso me sinto realizada.”

Um time de três
Além de Franciele, mais duas profissionais completam o time de profissionais da escola. A pedagoga Ednea Andrade Santos, 35 anos, é natural de Boqueirão do Leão e mora no município vizinho de Venâncio. Está a apenas 15 quilômetros da escola, portanto também conhece bem a região serrana da Capital do Chimarrão. Ela trabalha há cerca de 12 anos em escolas do interior e, apesar das turmas multisseriadas, garante que os pequenos são muito tranquilos.

Sob sua responsabilidade, estão três crianças do pré A e três do pré B. “Elas valorizam muito o que trazemos para dentro da sala de aula, porque os menores estão iniciando agora a vida escolar. O aprendizado encanta. E os pais também são muito participativos, tem um APM muito atuante, porque entendem que a escola é uma referência para a comunidade.”
A outra profissional é Eliane da Costa de Freitas, 48 anos, a ‘tia Eliane’. Ela é agente escolar – cuida da merenda das crianças e faz a limpeza do prédio. Eliane mora em Marmeleiro há mais de 20 anos e afirma: é a escola que movimenta a localidade. “A gente percebe, nas férias, o silêncio e o vazio que é. Nos últimos anos, muita gente foi embora, as famílias têm menos filhos. Então manter essa escola aqui é fundamental. Não só pelo aprendizado, mas para manter a própria comunidade.”
O transporte escolar e a situação da ERS-422
Das 24 crianças que estudam na Emef João Cândido de Moura, 20 usam transporte escolar, feito por três veículos (duas vans e uma Kombi), que percorrem, ao total, mais de 150 quilômetros por dia, entre o buscar e o levar. Devido às distâncias e os roteiros pela ERS-422 e as entradas de estradas vicinais, para muitos, o dia começa quando ainda está escuro, por volta de 6h.

Um dos motoristas é Leonardo Jair de Freitas, 23 anos, morador de Linha Marmeleiro. Ele percorre cerca de 50 quilômetros por dia, somando o início da manhã e o antes do meio-dia, para transportar seis crianças. O primo dele, Douglas de Freitas, 20 anos, é o monitor.
Para Leonardo, que está há cerca de um ano neste trabalho, o maior desafio não são as distâncias ou o sacolejar dentro dos veículos, mas sim a situação das estradas. “A 422 é sempre um problema, porque é muita pedra. A gente vai bem devagar, tem que cuidar em muitos trechos, mas sempre pode acontecer alguma coisa. Eu, só numa ida, já furei três pneus de vez.”
Manutenção
A ERS-422, rodovia que corta Linha Marmeleiro, é estadual. No entanto, há muitos anos, a Prefeitura de Venâncio Aires assumiu a manutenção da estrada, trabalho este, conforme o secretário de Infraestrutura e Serviços Públicos, Sid Ferreira, feito ‘no amor’. “Tem um termo de convênio que passou autorização para a gente mexer, mas não vem nenhum auxílio do Daer.”
Ainda conforme Sid Ferreira, o trecho da ERS-422 de Vila Deodoro para cima, é um dos mais difíceis para se trabalhar. “É uma estrada com muita laje, então o patrolamento em si é difícil. É um terreno acidentado, com muitas rochas e a gente procura deixar as valetas bem abertas, para que a água corra ali e não sobre a estrada, cortando ainda mais a via.”
Entre Vila Deodoro e a escola de Linha Marmeleiro, são 20 quilômetros. No dia em que a reportagem percorreu o trajeto, a estrada tinha sido mexida, mas é nítido que não se trata de uma manutenção fácil, devido à quantidade de material rochoso que compõe, naturalmente, a via. Depois do patrolamento, a capatazia de Deodoro passa o rolo, mas a Folha do Mate também flagrou servidores tirando, com as mãos, algumas pedras maiores e pontudas do meio da estrada.
Transporte especial
Entre os quatro alunos que não usam transporte, já que moram a menos de dois quilômetros da escola, está Maria Agahta, 4 anos, do pré A. Geralmente a menina é levada de moto, mas no dia que a reportagem esteve em Marmeleiro, ela chegou a cavalo. Quem teve a ideia foi a mãe, Marlete Petry Soares Furtado, 33 anos.
“Ela gosta muito de cavalo, então foi juntar o útil ao agradável, porque eu vim puxando a égua, fazendo uma caminhada pela manhã. Estou pensando em fazer isso mais vezes na semana”, comentou a agricultora. Marlete tem mais um filho, Kauã, 15 anos. Ele já foi aluno da João Cândido de Moura e, atualmente, estuda na Escola Estadual Sebastião Jubal Junqueira, de Vila Deodoro.

Os desafios de se manter a educação
Nos últimos anos, algumas escolas de interior fecharam devido à quantidade de alunos. Entre elas a Vidal de Negreiros, em Linha Julieta, onde Franciele Bohnenberger iniciou a vida como professora; a Presidente Vargas, em Linha Stamm; a Helmuth Lehmen, em Linha Cachoeira; e a Professor Adolfo, em Linha Sexto Regimento (que fechou em 2023, já que a previsão era iniciar o ano letivo com apenas oito crianças), só para dar alguns exemplos.
A João Cândido de Moura tem 24 crianças, mas, devido ao êxodo rural e às famílias cada vez menores, a iminência do fechamento segue preocupando a comunidade. Pensando em número como balizador de qualquer decisão, de acordo com a Secretaria de Educação de Venâncio Aires, existe uma resolução do Conselho Municipal de Educação que escolas com até 15 alunos são mantidas e, abaixo disso, a orientação é cessar.
“O desafio de se manter a estrutura física com recursos humanos suficientes para atender as 33 escolas municipais é muito grande. Estamos com 100% do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação] na folha de pagamento, todos os profissionais com graduação, a maioria com pós-gradução, isso qualifica, mas impacta a folha. Temos conseguido manter a remuneração acima do piso nacional e estamos indo para o quarto concurso público, além de manter hora-atividade”, explica o secretário de Educação, Émerson Henrique.
Sobre investimentos em infraestrutura, o secretário destaca a recente obra de reforma e ampliação na Emef Osvaldo Cruz (31 alunos), em Cachoeira, ‘vizinha’ da João Cândido (14 quilômetros de distância). “Muitas pessoas prestigiaram o evento e entendemos que investir na estrutura física dessas escolas é manter viva a ideia de manter os jovens no interior. Além disso, as escolas estão com mais autonomia para trabalhar, facilitando recebimento de emendas impositivas, por exemplo.”
Henrique também mencionou o esforço para garantir o transporte escolar. “São quase 11 mil quilômetros rodados diários fretados pelo Município, além das linhas de ônibus que fornecemos passagem para os alunos. Em 2024, o transporte vai girar em torno de R$ 9,8 milhões, sendo que 60% vem do Estado, 30% custeado pelo Município e 10% vem de programa federal.”

As menores escolas
Além da Emef João Cândido de Moura, outra escola municipal que está com o número de matrículas na casa dos 20 alunos é a Emef Cristino Goulart da Silva, em Linha Cerro dos Bois, com 26 crianças. Já no Estado, de acordo com dados da 6ª CRE, a menor é a Escola Estadual de Ensino Fundamental João Pádua da Rosa, de Linha Ponte Queimada, com 57 alunos.
“A escola é o que une a comunidade”
O atual prédio da Emef foi construído em 2008, no alto da estrada, num caminho ornamentado por hortênsias. Na frente do portão, um pé de marmelo, árvore comum na região e que, há décadas, serviu como abrigo em determinado trecho da 422 para os tropeiros que subiam e desciam a estrada da serra a cavalo. Por isso, a localidade ganhou o nome de Marmeleiro.
A escola fica do lado da Igreja São José e do ginásio da comunidade, sendo, portanto, o ‘coração’ de Marmeleiro. Foi fundada em 1969 e já ocupou outros prédios e teve outros nomes, como Benjamin Constant. Recebeu o nome de João Cândido de Moura em homenagem a um agricultor da localidade que também contribuiu para o início da vida escolar em Marmeleiro. Moura é bisavô de Claudete da Silva Cittolin, 53 anos, que trabalhou como agente de saúde na localidade e é vereadora suplente do PSD. “A escola é o porto seguro e o que une a comunidade”, define Claudete. As filhas dela, Ângela, 34 anos, e Angélica, 31, também estudaram na escola. A filha de Angélica, Nycole, 6 anos, é atual aluna do 1º ano. O caçula, Nycolas, ainda é um bebê, mas vai para o pré quando completar 4 anos. “Só no Marmeleiro estou acompanhando sete grávidas, então acho que a escola vai se manter por muitos anos ainda”, avaliou, entre risos, Angélica, que seguiu os passos da mãe e percorre a localidade de moto para trabalhar como agente de saúde.
Segundo Angélica Cittolin, atualmente Marmeleiro tem cerca de 250 moradores e a maioria vive do plantio do tabaco. Na Comunidade São José, são cerca de 35 famílias associadas, responsáveis por um trabalho importante em parceria com a APM da escola. Todo 12 de outubro, Dia das Crianças, se faz uma galinhada e ação entre amigos. O dinheiro arrecadado é sempre doado para a escola.

Infraestrutura
O prédio da escola tem cerca de 300 metros quadrados, composto por um saguão, duas salas de aula, banheiros, diretoria, depósito, cozinha e refeitório. Segundo a diretora Franciele, a escola recebeu uma emenda impositiva de R$ 25 mil sugerida pelo vereador Nelsoir Battisti (PSD).
Com o recurso, será possível fechar o saguão com porta de vidro e será instalado um ar-condicionado. “Assim, a gente consegue manter as crianças num ambiente quentinho no inverno, quando as temperaturas aqui ficam perto de zero grau no início da manhã”, comentou Frã. Outro objetivo é reformar os banheiros.
A diretora destaca ainda que, apesar das distâncias, são mais raros os episódios de falta de energia elétrica. No temporal de janeiro, ainda nas férias, foram seis dias sem luz na localidade. Sobre energia elétrica, aliás, ela chegou na localidade em 1981, conforme lembra Claudete Cittolin. “Eu tinha 10 anos. O que também lembro do tempo de criança é das promessas de asfalto na 422. Diziam que no ano 2000 estaria asfaltado. Já se passaram 24 anos, mas ainda é um sonho da comunidade.”
A Emef João Cândido de Moura também virou referência para comunicação. A internet foi instalada no educandário em 2022 e se decidiu manter o sinal aberto, já que não há sinal de telefonia na maior parte da estrada que liga Venâncio Aires a Boqueirão do Leão. “Uma das únicas formas de comunicação é via internet, assim é normal termos pessoas estacionadas na frente da escola com o único objetivo de se comunicarem”, revelou a diretora Frã.
Cascata Águas Claras
• Através de um projeto criado dentro da Emef João Cândido de Moura que uma cascata localizada em Linha Marmeleiro, foi batizada. Em votação na Feira do Livro de 2022, o ponto recebeu o nome de ‘Águas Claras’, já identificado, inclusive, pelo Google Maps.
Onde a vice-prefeita estudou
A João Cândido de Moura fez parte da vida de muitos moradores da região serrana e também foi a primeira escola (quando ainda se chamava Benjamin Constant) da vice-prefeita de Venâncio Aires, Izaura Landim, natural de Linha Marmeleiro. Izaura fez da 1ª a 4ª série, entre 1973 e 1976. “Sempre fui uma aluna dedicada e era encantada pelas possibilidades que a escola nos oferecia. Não tinha tecnologia, não tinha luz, mas tinha professores dedicados que me inspiraram muito.”
A vice-prefeita lembra que, também já nos anos 1970, era apenas uma única professora. “Ela dividia o quadro em quatro partes e passava as lições para cada série. A gente acabava aprendendo da nossa série e da outra também. Foi ali que compreendi a importância da educação”, comenta Izaura, que é enfermeira e também professora de curso Técnico de Enfermagem.
Para Izaura, a escola é, de fato, o coração de uma comunidade. “Tudo acontece no entorno. As entidades surgem dentro da escola. A comunidade São José, por exemplo, surgiu num puxadinho da escola. Tudo começou a partir dela e as pessoas foram se organizando. Acredito que a escola de Marmeleiro é o início de vida comunitária de todos que nasceram e moram lá.”
Impressões da repórter
Embora já tivesse percorrido a ERS-422 algumas vezes, foi minha primeira vez na Emef João Cândido de Moura. O prédio é bem novo em comparação com estruturas de interior, mas foi importante ver o trabalho, o cuidado e o capricho da comunidade escolar (professores, pais e moradores) para com esse patrimônio de Linha Marmeleiro. E do esforço público para manter a estrutura, numa região onde a situação das estradas é uma queixa histórica.
Em determinado momento da manhã, quando todos estavam concentrados nas atividades em sala de aula, me sentei no degrau da igrejinha, ao lado da escola. Os únicos sons que meus ouvidos captaram foram dos passarinhos, das cigarras, do latido de um cachorro e, muito longe, uma motosserra. É o dito sossego de interior, que só foi quebrado na hora do recreio, com o corre-corre, os gritos, as risadas, o ranger dos balanços na pracinha. Acho que entendi, naquele momento, o que todos dizem quando afirmam que uma escola é a vida de uma comunidade, seja num bairro, seja numa das regiões mais longínquas desses 772 quilômetros quadrados de extensão territorial de Venâncio. Essas 24 crianças queridas me receberam com muito carinho, abraços no portão e corações desenhados em folhas de caderno. Numa das cartinhas, assinada pela Vitória, 9 anos, estava escrito: “Moça, você é muito legal”. Legais são vocês, crianças, e a moça aqui lhes deseja um futuro lindo!