Paredão Pires mais perto de realizar o sonho da água potável

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No extremo do mapa de Venâncio Aires, famílias ainda consomem água imprópria. Remobilização da comunidade e efetivação da rede hídrica são motivos de esperança na localidade para o fornecimento de água potável.

Imagine, dentro da sua casa, abrir a torneira e não saber se a água que vem pelo cano é própria para beber ou se pode ser usada para preparar alimentos? Ou nos períodos chuvosos ver a água sair barrenta e nos períodos de estiagem simplesmente a torneira secar? Pois essa é, em pleno 2024, ainda uma realidade para quase 100 famílias moradoras de Linha Alto Paredão Pires, localidade venâncio-airense que faz divisa com Boqueirão do Leão, Sinimbu e Santa Cruz do Sul, e está a 60 quilômetros da sede da Capital do Chimarrão.

Lá, no extremo noroeste do mapa do município, água potável e encanada ainda é considerado um sonho há mais de 30 anos, mas que pode se tornar real ainda nesse ano. Para entender esse cenário, a Folha do Mate subiu a ERS-422, literalmente até os campos acima da região serrana, onde a natureza enche os olhos, mas peca em recurso hídrico.

Após dias de chuva, a água vem suja ou barrenta e limpeza precisa ser constante nos reservatórios (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

“É tão básico, mas ao mesmo tempo tudo”

Doraci dos Santos, 59 anos, nasceu e cresceu em Paredão Pires. Desde que se entende por gente, água se pega em cacimba junto de açude, em vertente e até em banhado, onde a água é ‘choca’ (podre). Ou seja, água potável e tratada é um luxo que ainda não saiu na torneira da casa dele, onde mora há 33 anos com a esposa Lizete, de 55 anos. Mas, nos últimos dias, a informação da desapropriação de uma área onde há um poço artesiano, o que deve agilizar os trâmites para a efetivação da canalização da rede hídrica (veja abaixo), animou o agricultor e dezenas de famílias.

“Estamos chegando perto”, define ele, sobre a possibilidade de ter água potável dentro de casa. “É uma coisa tão básica e ao mesmo tempo é tudo. E aqui sempre foi assim: no inverno, com a chuvarada, a água vem com barro. E quando tem seca, a água acaba. Então o dia que vier essa água boa para beber na torneira, é de a gente se emocionar”, diz Santos, já com os olhos marejados.

Lizete, que também é de Paredão, lembra do improviso na infância, quando ela e os irmãos precisavam puxar cerca de oito baldes de água diariamente para que todos pudessem se banhar, quando os pais voltavam da roça. “Mas a gente era pequeno, então puxava na chaleira. Era nossa tarefa. Hoje não puxa mais na chaleira, mas ainda é água de açude. Por isso Deus vai nos ajudar para ter uma água boa na torneira logo, logo. A promessa é que quando tiver tudo funcionando, todos vão tomar um banho de mangueira coletivo”, conta Lizete.

Maria (esquerda) cede água para os vizinhos Lizete e Doraci (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Para os vizinhos, o postinho e a comunidade

Os Santos pegam água da vizinha da frente, Maria Ferreira, 58 anos. Na propriedade da agricultora, onde são três moradas (a dela, do genro e do irmão), há um açude com cacimba, que leva água para essas famílias, mais um vizinho próximo, para o ‘postinho’ de saúde (prédio da antiga escola Alcebíades Moreira) e para o salão da Comunidade Nossa Senhora das Graças. “A gente se ajuda como pode. E agora se vier água boa, vai ser uma felicidade”, resumiu Maria.

A cacimba é uma caixa construída dentro do chão e fica coberta, próxima do açude. Está no meio de bananeiras, pois os moradores acreditam que as raízes já funcionam como uma espécie de filtro. No dia em que a reportagem esteve lá, a água saía cristalina. “Quem diz que essa água tem problema, olhando assim, limpinha? Mas não é tratada”, relatou Doraci. Segundo ele, em todos esses anos, é comum algumas pessoas se queixarem de diarreia, a qual eles acreditam ter relação com a água.

Água potável: um sonho para a comunidade

O produtor de tabaco Vanderlei da Silva, 46 anos, estava com balde e um pano encharcado de água suja quando Folha chegou na propriedade dele. Ele finalizava mais uma limpeza na caixa de água de 500 litros, que abastece todas as torneiras dentro de casa, o que inclui cozinha, lavanderia e banheiro. Limpeza que precisa ser feita a cada cinco dias. “A água que tem é essa. Quando chove e suja muito, temos que limpar e aguardar até ficar limpa. Quando vier água potável, vai ser uma melhoria muito grande, para a saúde, para tudo.”

Na casa do agricultor, ainda moram a esposa Elci Bechert, 42 anos, e as três filhas. “Quando vem meus parentes de São Leopoldo, eles trazem água. Porque dizem que essa água aqui dá dor de barriga”, revela Elci. Hoje, para o reservatório da família, a água é bombeada de uma cacimba junto a um açude próprio, que fica a mais de 400 metros. Quando a rede hídrica for canalizada, o caminho vai ser um pouco mais longo, cerca de um quilômetro, mas a distância não importa. “Vai ser um luxo. É um sonho para nós e para toda a comunidade”, afirma Vanderlei.

Vanderlei da Silva, que bombeia água de um açude próprio, espera, em breve, ter água potável chegando à caixa de 500 litros (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Tempo de seca

José Ari Watte, 75 anos, mora há mais de quatro décadas em Paredão Pires e é um dos moradores mais velhos da localidade. Na propriedade onde ele mora com a esposa Mafalda, 68 anos, o filho Darlei, a nora Fabiana e uma neta de 10 anos, a água vem de uma vertente na vizinha. Fonte essa que, em tempos de estiagem, a família sempre precisa poupar para o consumo humano.

Para os animais, banheiro e lavar a roupa, o jeito era buscar em outro lugar. “Meu filho carregava uns três ou quatro tonéis de 200 litros cada na caminhonete e buscava água em Boqueirão do Leão ou no rio Pequeno, em Sinimbu. Isso durava uns dois a três dias”, relata Watte.

Para o aposentado, a expectativa de ter água potável em casa é motivo de alegria. “Nosso lugar é rico em água, pela quantidade de açudes, mas ao mesmo tempo é pobre, porque ela não é boa para o consumo. Então essa notícia de ver a rede hídrica perto de funcionar é uma felicidade.”

Na cozinha da casa de José Watte, a água que vem de uma vertente na vizinha passa por um filtro. A orientação na comunidade é que os moradores também fervam a água antes de beber (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Canalização de água potável em Paredão Pires pode começar em 60 dias

“Essa luta tem quase 30 anos e a comunidade está perto de finalmente ter água potável e encanada.” A frase é de Flávio Vittorazzi, presidente da Associação Hídrica Serrana de Alto Paredão Pires. Há poucos dias, a entidade teve a confirmação da desapropriação de uma área onde fica um poço artesiano com capacidade de 6,8 mil litros por hora e o qual já passou por testes, estando apto para ter água captada e devidamente tratada, antes de seguir para os canos das mais de 50 famílias que integram a associação. “Foi uma negociação intermediada pelo Ministério Público e na audiência, houve concordância por uma desapropriação amigável e indenizatória aos proprietários. Foram duas desapropriações: uma onde é a área do poço e outra onde ficará as caixas de água. E uma cessão de uso numa estrada de acesso ao poço”, explicou Vittorazzi.

Os proprietários das terras onde fica o poço são Giovana Busatta, 38 anos, e o marido Ademir Ferreira, 39. “Nós pegamos água de um açude do vizinho e ver esse poço funcionando, com água potável, é um sonho realizado para todos. Independente de onde fosse esse poço, aqui ou em qualquer morador, não importa. Importante é ter água boa para todos”, afirmou Giovana.

Documentação

Sobre o seguimento dos trâmites burocráticos, o presidente da associação explica que a documentação da Prefeitura já está em cartório para fazer a escritura e os projetos já podem ser encaminhados. “Com a área sendo do Município, depois repassa para a associação. Aí precisa do projeto, onde vai passar a canalização. Acreditamos que em torno 60 dias devem iniciar as obras.”

Para colocar tudo em prática, Flávio Vittorazzi lembra que há um recurso de R$ 250 mil. Esse dinheiro foi confirmado ainda em 2022, quando a associação também foi criada, e tem origem na indicação de uma emenda parlamentar do deputado federal Márcio Biolchi (MDB). “Eu mesmo procurei o deputado estadual Juvir Costella (MDB) e ele que intermediou com o Biolchi”, destaca.

Presidente Flávio Vittorazzi (centro) e outros membros da associação, junto ao poço artesiano onde ficará a rede hídrica (Foto: Arquivo pessoal)

Tentativas de amenizar

  • Flávio Vittorazzi conta que há muitos anos existia uma associação, mas ela foi ‘não foi para frente’ porque não houve interesse, nem investimentos. O agricultor Doraci dos Santos, que chegou a integrar essa associação anterior, confirma que houve dificuldades. “Esbarrava em testes na água e ficava por isso. Aí o pessoal foi desmotivando, não teve incentivo e acabou tudo.”
  • Nos últimos anos, houve outras tentativas para amenizar os problemas com a água em Alto Paredão Pires. Em 2019, por exemplo, a Prefeitura de Venâncio Aires instalou um sistema de abastecimento, através de uma parceria com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa).
  • Era a chamada Solução Alternativa Coletiva Simplificada de Tratamento de Água (Salta-Z), mecanismo que captava água de um açude particular e depois fazia a decantação. No entanto, um desentendimento teria levado o proprietário a acabar com o açude, o que interrompeu o programa.
  • Na metade de 2021, a Administração realizou novas ações para facilitar a captação de água. Foram mais de 20 serviços de escavação de poços com cacimbas e manutenção de taipas de açudes, beneficiando pelo menos 30 famílias.
  • Como a comunidade também sofre com a falta de água nos períodos de estiagem, a Prefeitura distribuiu, em 2022, mais de 30 caixas d’água, de 3 mil e 5 mil litros. Para encher os reservatórios e mesmo de quem já tinha o seu, por várias vezes foram usados caminhões-pipa para levar água até os moradores, assim como água mineral.
Água mineral foi levada para a localidade nesta semana pela Defesa Civil de Venâncio (Foto: Divulgação)

Remobilização dos moradores

Flávio Vittorazzi, presidente da Associação Hídrica Serrana de Alto Paredão Pires, revela que, mesmo a água sendo um problema para toda a comunidade, foi um trabalho grande de remobilização dos moradores, já que muitos perderam a esperança nos últimos anos. “Foi importante e decidimos que precisávamos levantar essa demanda antiga, de ter uma associação consolidada, para buscar mais melhorias. Tendo a associação efetivada e forte, seria o começo e hoje já são 52 famílias associadas.”

Vittorazzi, que não é natural de Paredão Pires, mas tem uma propriedade lá com o companheiro Daniel Moreira, comenta que a localidade nunca recebeu atenção igual a outros lugares. “Às vezes a gente se pergunta porque o pessoal da cidade, quando falta uns dias de água, já se queixa. No Paredão nunca teve sequer água potável. Então agora as famílias estão no céu, porque estão vendo tornar um sonho realidade e levando a memória de pessoas que lutaram há anos e não estão mais aqui. Isso é um mérito da comunidade, dos que estão e aqueles que já se foram.”

“São poucos os que nos enxergam. Olhando de baixo para cima, somos os últimos no mapa. Mas de cima para baixo, somos os primeiros de Venâncio. E a comunidade está fazendo história.”

FLÁVIO VITTORAZZI – Presidente da Associação Hídrica Serrana de Alto Paredão Pires

Futuro da localidade

Para o prefeito Jarbas da Rosa, que assinou há alguns dias o decreto que declara como utilidade pública a área onde está o poço, se trata de um investimento na saúde e no social, para fortalecer a comunidade, e será um passo importante para o futuro da localidade.

“Houve algumas medidas paliativas no passado, mas não tiveram efetividade. Então viemos trabalhando, principalmente na prospecção de uma área definitiva e avaliações de poços. A partir do momento que a potabilidade do poço foi comprovada, trabalhamos na desapropriação. Foi assinada há alguns dias e agora sendo feita a documentação no registro de imóveis. Com a documentação em dia para a associação, se faz a cedência e começa a trabalhar no projeto para a rede hídrica, canalizando essa água para as propriedades”, relatou Jarbas.

Realidade da água potável no Brasil

No Brasil, 33 milhões de pessoas vivem sem acesso à água potável, segundo dados divulgados em março pelo Instituto Trata Brasil.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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