Por Juliana Bencke e Leonardo Pereira
Basta contornar o trevo na RSC-287 e ingressar em Vila Mariante para ver que as marcas deixadas pela maior catástrofe climática do Rio Grande do Sul levarão muito tempo para ser apagadas. O verde da nova vegetação começa a aparecer sobre a mancha marrom deixada pelas águas do rio Taquari que inundaram o 2º Distrito de Venâncio Aires, no início de maio. Entre escombros de casas e empresas, alguns poucos estabelecimentos comerciais já reabriram.
O movimento na ERS-130 e demais ruas da vila, entretanto, ainda é praticamente nulo, e o silêncio é o que predomina – cortado apenas pelo som de lava-jato ou do martelo, em alguma reforma. Três meses depois das enchentes que atingiram 23 mil pessoas em Venâncio Aires – grande parte delas no 2º Distrito –, a Folha do Mate foi até o local ouvir as histórias de quem retornou, quem decidiu refazer a vida em um lugar sem risco de enchente e quem acredita no potencial de retomada da região.
Retorno à Mariante
Entre os que voltaram para a vila está Jaci do Couto, 62 anos, morador da rua Vereador João de Oliveira Santa Fé. A casa dele é uma das 27 que ficou habitável no perímetro urbano de Vila Mariante, conforme avaliação de voluntários do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea). A água que chegou até o forro destruiu todos os móveis e eletrodomésticos, além de portas e parte das estruturas. Agora, ele e a companheira Glaci Faleiro da Silva, 57 anos, – cuja casa na localidade de Santa Mônica foi destruída – buscam reconstruir a vida. “Estou sempre no conserto, arrumando o que consigo”, afirma Jaci. Junto deles está o cachorro Sansão, de 11 anos, que sobreviveu à enchente. “Ele estava no abrigo e iria ser adotado, mas minha irmã reconheceu e nos avisou. Quando nos viu, ficou muito feliz”, relembra o pensionista.
O casal voltou para a residência há cerca de dois meses, mas deixa claro que essa não foi uma escolha. “Fiquei ‘de favor’, por um tempo, na casa de amigos e familiares. Procurei casas em Venâncio, Bom Retiro do Sul e Fazenda Vilanova, mas não consegui aluguel. Não consegui outro lugar, então voltei para a vila”, relata.
Jaci reconhece o quanto tem sido difícil se recuperar após a tragédia – tanto pelo impacto material e financeiro quanto psicológico. “Depois da enchente, adoeci. Tenho uma dor de cabeça forte, às vezes, e tem horas que sinto uma depressão. Até agora não recebi nada [referente aos auxílios governamentais]. Não está sendo fácil, tem dias muito difíceis”, desabafa.
Uma nova história longe de casa
Jorge Martins, 54 anos, e Tamires do Couto, 36 anos, estão na expectativa pela construção das casas em Vila Estância Nova. Com um filho de 10 anos, eles passaram a morar no loteamento Tabalar, na área urbana de Venâncio, com auxílio do aluguel social da Prefeitura, depois que a casa em Mariante foi destruída pela cheia do rio Taquari. “Não vamos voltar”, enfatiza o autônomo.
Como trabalha com instalação de ar-condicionado, o casal vai até Mariante praticamente a cada dois dias. A maior parte do serviço é para a retirada dos equipamentos nas casas desabitadas. “Estou com uns 30 aparelhos guardados, pois as pessoas estão esperando para instalar onde realmente vão ficar depois”, explica Jorge Martins.
“Coragem não tenho mais”
Assim como Jorge e Tamires, a aposentada Maria Aparecida da Silva aguarda por uma residência em outro local. “Quem tem coragem, volta, mas eu não tenho mais”, ressalta. Embora a casa esteja de pé, ela não tem como voltar por conta do filho deficiente, que é cadeirante. “Eu amo Mariante, sempre vivi aqui, mas não tenho mais condições de passar por tudo aquilo de novo”, desabafa.
“É angustiante e triste ver a vila arruinada. Estudei e me criei aqui, mas agora não volto mais. Vamos esperar pelas casas da Prefeitura.”
JORGE MARTINS
Autônomo
Infraestrutura básica e novas alternativas de moradia
Para o prefeito Jarbas da Rosa, a avaliação inicial da Administração, há três meses, foi confirmada, pois a enchente teve um impacto devastador em Vila Mariante e localidades próximas. “A população já estava acostumada com enchentes, onde a água baixava e era possível limpar as casas e retornar à normalidade. Agora não, são mais de 200 casas totalmente destruídas”, disse, em entrevista ao programa Folha 105 – 1ª Edição, da Terra FM 105.1.
Atualmente, 222 famílias estão em aluguel social e o número total de atingidos pode chegar a 400 – muitas pessoas ainda estão em casas de familiares, por exemplo. “Observamos, desde o início, que houve uma migração. E é natural, porque não existem mais casas, não tem o que reformar. Em Santa Mônica, por exemplo, que é uma das regiões com maior concentração, são mais de 150 famílias que moram ali. Mas, em contrapartida, foi onde teve menos destruição do ponto de vista de perda total de casas, por isso vários voltaram”, contextualiza o prefeito.
Conforme o chefe do Executivo, existem pessoas que querem voltar e outras que preferem morar em outro local, mais seguro. Por conta disso, ele considera que o Município precisa dar condições para que todos possam decidir, respeitando a vontade do morador. “Vamos possibilitar a mudança para outro local, como em Vila Estância Nova, onde serão 72 residências construídas, assim como nos bairros Brands e Battisti, e, para quem quer voltar, garantir a infraestrutura básica, com estradas e atendimento de saúde e educação”, explicou, ao fazer referência ao atendimento da Unidade Móvel de Saúde todas as quartas-feiras na localidade e, também, à disponibilização de transporte escolar para os alunos da Escola Mariante até a Adelina Isabela Konzen, onde ocorrem as aulas.
No entanto, enfatizou que, legalmente, a Administração não pode mais investir recursos para reconstrução do posto de saúde e da escola na localidade, por exemplo, por estarem em áreas de risco.
“Com muito respeito e empatia o Poder Público Municipal tem que dar condições para essas famílias poderem reconstruir a sua vida e oferecer opções de mudança para outros locais.”
JARBAS DA ROSA
Prefeito
Em Santa Mônica, a esperança de quem decidiu retornar
Uma das localidades mais populosas do distrito de Vila Mariante e onde a destruição não foi tão grande como em outras regiões, Linha Santa Mônica é um dos locais que registra a maior movimentação de pessoas voltando para casa. “Muitas pessoas que estão morando de aluguel vêm no fim de semana para limpar as casas, ir ajeitando o que dá. Muita gente está só esperando os R$ 5,1 mil [benefício anunciado pelo Governo Federal] para reformar e pode voltar definitivamente”, afirma a comerciante Fernanda Reis, 35 anos.
Proprietária de um minimercado, ela retornou para o imóvel, onde também reside, há cerca de um mês. “Tive diversos estragos, mas o comércio é meu ganha-pão, então precisei voltar. No primeiro momento eu não ia retornar, mas o pessoal foi pedindo para que voltasse e abrisse o minimercado. Um dá força para o outro”, ressalta a mãe de Carolina, 12 anos, e de Gabriela, de 2 anos e 2 meses.
A mais velha é estudante do 7º ano da Escola Estadual de Ensino Médio Mariante e, assim como outros alunos, foi transferida para a Escola Adelina Isabela Konzen, em Vila Estância Nova. “Está muito bom lá”, diz a menina.
Na avaliação de Fernanda, entre as principais demandas da comunidade são melhorias nas estradas e recolhimento de entulhos. Ao lado da casa dela, onde também fica o minimercado, por exemplo, há uma casa totalmente destruída. Além disso, na porta dos fundos, é impossível acessar o terreno por conta da quantidade de barro e lixo acumulado.
“Acredito que, assim que vier o dinheiro [benefício de R$ 5,1 mil do Governo Federal], mais pessoas vão arrumar suas casas e voltar.”
FERNANDA REIS
Comerciante e moradora de Santa Mônica
Escola Mariante
1 Instrumentos da banda jogados, classes reviradas, livros abandonados, vidros quebrados e partes de estrutura destruídas. Esse é o cenário do prédio da Escola Estadual de Ensino Médio (EEEM) Mariante, em Vila Mariante.
2 O local que, por muitos anos, recebeu centenas de alunos, agora parece cena de filme, completamente abandonado três meses após a enchente histórica.
3 Enquanto isso, a rotina dos estudantes segue, junto à Escola Estadual Adelina Isabela Konzen, em Vila Estância Nova. Desde 6 de junho, uma quinta-feira, cerca de 90 alunos passaram a dividir as salas com os estudantes do educandário do distrito vizinho.
4 Conforme a diretora da Escola Mariante, Naira Elisabeth da Rosa, a rotina está sendo tranquila e, tanto diretoria quanto alunos, foram muitos bem recebidos na Adelina. “Vida que segue, mas não temos nenhuma definição com relação ao futuro da nossa escola”, destaca.
5 A incerteza é após o fim deste ano letivo. Naira diz que, neste ano já está confirmada a manutenção junto da Adelina, mas não há nada concreto para os próximos anos. “Queríamos muito ter a escola de novo, mas já temos uma confirmação de que não voltaremos para Mariante. Não se tem mais informações com relação ao futuro”, enfatiza a diretora, cuja gestão encerra no fim deste ano.
A Comunidade Católica Nossa Senhora dos Navegantes, que também teve o pavilhão e a igreja atingidos pela cheia, projeta para este mês a retomada das missas. Conforme o presidente Roni Maria, a tendência é que esta seja realizada na segunda quinzena de agosto, em data a ser confirmada.
Água e transporte em Mariante
Reclamação constante dos moradores, a qualidade da água está normalizada, segundo o gerente local da Corsan, Ilmor Dörr. Ele afirma, ainda, que a água é potável e não há alteração, mas que o serviço é desligado durante a noite. “Na noite não opera, chegamos pela manhã com água”, explica, contextualizando as mudanças no serviço após a enchente, que causou rompimento de canos e equipamentos
Os horários de ônibus também sofreram alterações após a enchente. Os coletivos da Viasul para sair do 2º Distrito são às 6h, às 7h50min e ao meio-dia. Já os horários saindo da cidade para a localidade são 10h30min e 17h.
Frigorífico Boi Gaúcho
Principal expoente econômico e gerador de empregos de Vila Mariante, o Frigorífico Boi Gaúcho foi um dos primeiros empreendimentos a retomar as atividades, ainda em maio, dia 29, menos de um mês após a enchente.
Dois meses após a retomada, o estabelecimento já trabalha com 100% das atividades, inclusive com a retomada das exportações. Fato que é motivo de comemoração para o proprietário Neri do Nascimento. Conforme ele, a empresa segue um processo de motivação dos funcionários, principalmente daqueles que perderam a residência durante a cheia. A empresa também passou a oferecer transporte para possibilitar que pessoas que tiveram que sair de Mariante seguissem trabalhando no local. “Quase todas as sextas-feiras preparamos um churrasco ao meio-dia, quando também é momento de conversar com todos, entender as angústias e planejar os próximos passos”, declara.
Atualmente, são cerca de 250 funcionários na fábrica, que abate cerca de 7 mil cabeças de gado por mês. “Foi uma pancada grande, mas agora é levantar a cabeça, arregaçar as mangas e seguir em frente. Ficamos felizes em ver a retomada da comunidade”, completa o empresário.
Folha 105
Na sexta-feira, 2, o programa Folha 105 – 1ª edição, da rádio Terra FM, abordou a situação e as perspectivas de Vila Mariante, três meses após a enchente, a partir de depoimentos de moradores e entrevista com o prefeito Jarbas da Rosa.