Quem olha hoje para o Miguel Vicente Bencke, 5 anos, não imagina o que ele e a família, moradores de Linha Barbosa, no interior de Venâncio Aires, passaram até que o pequeno tivesse o diagnóstico da fibrose cística (FC), aos quatro meses de vida. A mãe, Sandra Vicente, 41 anos, afirma: “Sofremos muito até ter o diagnóstico preciso.” Já nos primeiros dias de vida de Miguel, a família começou a reparar em sintomas e situações que só mais tarde confirmaram o diagnóstico da doença. A diarreia era frequente e aos 20 dias de vida a tosse também se fez presente. O teste do pezinho deu o primeiro indício: uma alteração para fibrose cística, e para investigar, os pediatras pediram outro exame, que veio normal. “Os médicos achavam que ele estava bem, que tudo era normal”, afirma. Outro detalhe que a família comentava aos profissionais de saúde, era o suor salgado que Miguel apresentava.
Aos dois meses de vida a tosse piorou, o que levou Miguel a ser internado e passar pelo tratamento de pneumonia. Ficou 14 dias no Hospital São Sebastião Mártir (HSSM), de Venâncio Aires e já apresentava uma lesão em 90% do pulmão direito. “Ele sempre aparentou ser saudável, era gordinho, mas às vezes de forma repentina, ficava pálido”, relata a mãe. A diarreia seguia, um sinal da FC, já que a doença não deixa o organismo absorver os nutrientes do que a pessoa ingere. Miguel ainda passou por uma segunda internação, de 11 dias, em Venâncio, novamente tratando uma pneumonia.
Sandra explica que decidiram procurar outros médicos, que começaram a dar mais atenção aos sintomas apresentados. Ao fazer o exame para FC veio a confirmação. “É um alívio saber o que nosso filho tem, nesse ponto ele já estava tão desidratado que tivemos que dar soro para ele de seringa na boca e passamos a noite inteira acordados para repor a água e o sal dele.” Logo após, Miguel foi internado no Hospital Ana Nery, em Santa Cruz do Sul. “Tivemos que correr com ele, já que a FC é mortal”, acrescenta. No dia seguinte, foi levado para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital de Clínicas, em Porto Alegre. “Ao chegar lá, ele já estava bem, assim como a piora, a melhora e recuperação são rápidas. Mas os médicos falaram que se demorássemos mais para descobrir e tratar corretamente a doença, perderíamos ele.”
Em Porto Alegre, ficou um dia na UTI e uma semana no hospital, quando realizaram os exames do suor e o genético, e confirmaram o tipo mais comum de fibrose cística, o Delta F508 homozigoto, que também tem mais pesquisas e opções de tratamento. Após o diagnóstico, Miguel ainda precisou de mais internações até acertar o tratamento e também para tratar a lesão no pulmão. No Natal de 2019 foi um dos episódios, quando a mãe passou a data no hospital com Miguel. Depois de acertar o tratamento com a reposição de sal, administração de soro caseiro e remédios, Miguel nunca mais precisou ser internado, e agora, ele consulta no hospital da capital a cada três meses para acompanhamento. “É o nosso canal de apoio, ainda estamos em um processo de descobertas sobre a doença”, reforça Sandra. Hoje, Miguel estuda no Nível II da Educação Infantil no Colégio Gaspar Silveira Martins.
“Queremos mostrar que apesar da doença, é possível viver bem e ter uma vida normal com a fibrose cística.”
SANDRA VICENTE
Mãe do Miguel, que tem fibrose cística
Campanha
• Miguel é inscrito na Associação Gaúcha de Assistência à Mucoviscidose (AGAM), e através deste contato, foi indicado para participar da campanha da ONG Unidos pela Vida, com sede em Curitiba, e que divulga o Setembro Roxo, mês de conscientização sobre a fibrose cística para todo o país. “A campanha serve para que outras famílias não passem pelo que passamos, também, para mostrar que o apoio da família é fundamental, pois não é fácil”, afirma Sandra.
• A escolha por Miguel, segundo explica a mãe, também se deu por ser um paciente gaúcho, já que a entidade tinha preferência por famílias gaúchas, devido aos desastres climáticos que aconteceram no Estado neste ano. A gravação ocorreu em Porto Alegre, no mês de julho.
• Em rede nacional, um comercial é transmitido na televisão e a família divulga a campanha com panfletos e pelas redes sociais. Mais informações podem ser conferidas no site unidospelavida.org.br ou pelas redes sociais da Unidos pela Vida.
Doença genética e rara
Para entender sobre a doença a pneumologista pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e presidente do Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística, Elenara Procianoy, explica os sintomas, diagnóstico e tratamento da FC. A médica afirma que a fibrose cística é uma doença genética que afeta várias partes do corpo, mas a preocupação com o acometimento pulmonar é a mais relevante, pois a doença pulmonar é a principal causa de redução da sobrevida dos pacientes.
Elenara explica que a doença pode ser diagnosticada mesmo em uma fase assintomática, ou seja, antes que qualquer dos sintomas sugestivos se manifestem, pois faz parte das doenças triadas pelo teste do pezinho. Após o nascimento, o diagnóstico também é realizado pelo teste do suor que detecta níveis elevados do cloro; e a pesquisa dos genes da fibrose cística, que também pode ser realizada através de exames do tipo sequenciamento genético.
Os sintomas mais frequentes são os associados às doenças pulmonares, como a tosse, caracteristicamente com produção de catarro; ao acometimento do pâncreas afetando a absorção dos alimentos, em especial as gorduras; e ao acometimento das glândulas sudoríparas que causa o suor salgado (sódio baixo no sangue e desidratação). Outros sintomas podem surgir devido à baixa absorção de vitaminas, em especial as vitaminas A e D. “São notados casos com fezes mal formadas, fétidas, com presença de gordura; dor abdominal, e baixo ganho de peso do paciente, levando à desnutrição”, observa a médica.
A presidente do grupo de estudos sobre a doença, comenta que ela é hereditária, do tipo autossômica recessiva. “Isto significa que o pai e a mãe tem o gene da doença, mas não a tem, são somente portadores do gene. Ao conceber o bebê, é usado um gene de cada progenitor e o bebê nasce com a fibrose cística”, explica.
O tratamento padrão atual visa diminuir a progressão da doença pulmonar e substituir as enzimas pancreáticas que não são produzidas pelo pâncreas, corrigindo a diarreia com gordura, melhorando a absorção dos alimentos e das vitaminas e evitando a desnutrição. O tratamento da doença pulmonar envolve a realização de sessões de fisioterapia, nebulizações e uso eventual de antibióticos, porém Elenara ressalta que é um tratamento preventivo. “Há cerca de 12 anos é utilizada uma nova categoria de medicamentos, chamada moduladores do gene CFTR da fibrose cística, que atua diretamente na causa básica e que tem mostrado excelentes resultados.” Este tratamento, segundo ela, é considerado como uma revolução e um verdadeiro divisor de águas na história da fibrose cística, permitindo aos pacientes uma melhor qualidade de vida, melhor estado de nutrição e, inclusive, recuperação da função pulmonar que é acometida pela doença.