O que fica quando quem a gente ama se vai

A saudade da vó Lucira tem gosto de sacolé de menta, de pastel de uva e das diversas ‘variedades’ de bolachas cuidadosamente servidas numa bandeja coberta com um pano de prato. Um pano de prato com crochê feito por ela, é claro. Tem sabor do chá gelado para refrescar no verão e da pipoca com cobertura de açúcar com leite. Da batatinha frita cortada em rodelinhas que sempre era o prato principal para os almoços com os netos. A saudade da vó tem o calor daquele abraço carinhoso e o beijo estalado que ela gostava de dar. “Minha neta querida.” Quantas vezes essa frase fez festa no meu coração.

Tenho sorte de sentir saudade. Afinal, a gente vive uma intensa jornada para construir essa saudade. O tamanho dela não está tanto na quantidade mas na intensidade desse tempo. Está nas incontáveis rodas de chimarrão que dividimos – perto do fogão à lenha, nos dias frios, ou na varanda e com o ventilador bem pertinho, no verão. Está nas noites em que eu e a minha irmã Sabrina dormíamos na casa da vó. Nos jogos de bingo em que apostávamos moedas de R$ 0,10 ou enquanto assistíamos ao Roda a Roda e a outros programas do Sílvio Santos. Nos almoços durante o encontro de idosos, quando até me arriscava a jogar bolãozinho de mesa. Nas apresentações de fim de ano da escola, em todos os aniversários e datas comemorativas – quando o presente, geralmente, era uma nota de dinheiro embalada caprichosamente em um pequeno papel de presente.

Conviver com os avós é um privilégio. E das coisas que mais me orgulham foi ter sido uma neta presente não apenas na infância mas também na vida adulta. Ter podido ser motorista da vó em algumas ocasiões. Era só chegar e convidá-la para uma apresentação musical, um teatro ou o culto, que ela estava disposta. Poucos minutos depois, vinha, toda perfumada, o cabelo perfeitamente penteado, preso com um grampinho, e a bolsa a tiracolo, pronta para sair. Muitas coisas ficam quando alguém que a gente ama se vai. Nos últimos dias, enquanto a saudade apertava, fui entendendo o quanto do que fica vai além do material. Permaneceram as flores no pátio, mas também a admiração e o cuidado às plantas que ela repassou aos familiares. Olhar uma flor é lembrar dela – ainda mais se for uma ‘Jakobsblume’. Ficaram as xícaras bonitas expostas no guarda-louças, mas sobretudo as lembranças dos cafés cheios de delícias servidos para a família e as amigas nas festas de aniversário, em tardes quentes de janeiro. Os ímãs na geladeira, os cartõezinhos feitos pelos netos, os guardanapos de crochê, detalhadas anotações em caderninhos – de telefones e datas de aniversário dos familiares às compras no mercado e visitas da agente de saúde. Ficou o cenário de uma vida e das nossas memórias.

Ficaram as fotos da neve em Horizontina, onde viveu com a família, há cerca de 60 anos. Permaneceu a lembrança desse episódio que foi uma das mais marcantes da vida dela e, sem dúvida, a história que mais contou ao longo de quase nove décadas de vida. Repetiu em muitas e muitas ocasiões, como se, a cada vez, revivesse aquele início de manhã quando ela achou ter visto “florzinhas de pêssego” voando, mas o marido esclareceu que era neve! Nunca entendi como ela sequer saiu para tocar e ver a neve de perto, embora o marido tivesse colocado o pala e, junto dos vizinhos, percorrido as ruas da cidade. Mas os tempos eram outros…

Muitas coisas ficaram, mas uma delas a vó sempre fez questão de que fosse com ela quando ela deixasse de viver: uma roupinha branca usada por ela no batizado, na Igreja Evangélica de Linha Marechal Floriano, onde ela também estudou, fez a Confirmação e se casou. Uma pequena peça de roupa que guardou por toda sua vida e fez questão de que fosse sepultada com ela. Só nos demos conta do que aquilo representava nas palavras do pastor Gilmar Zacomelli: foi seu maior testemunho de fé. Por todas as cidades onde morou, nas frequentes mudanças – quando os móveis e pertences eram poucos e o “resto caminhão era cheio de filhos”, como ela contava – aquela pequena peça de roupa do batismo sempre teve lugar garantido. Foi guardada com todo carinho por ela. Ficou entre nós uma réplica, a partir da ótima ideia da tia Nelmira, de eternizar essa história tão especial.

*Este texto é uma homenagem à minha avó paterna, Lucira Bencke, que faleceu no dia 8 de novembro, aos 89 anos. Mãe de 10 filhos, uma mulher batalhadora, uma avó amorosa e minha leitora fiel. É bom poder sentir saudade!



Juliana Bencke

Juliana Bencke

Editora de Cadernos, responsável pela coordenação de cadernos especiais, revistas e demais conteúdos publicitários da Folha do Mate

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