Os últimos dias de abril e os primeiros de maio de 2024 deixaram sequelas permanentes nas comunidades venâncio-airense e gaúcha. Não apenas dos bens materiais e de residências destruídas pelas águas do arroio Castelhano e do rio Taquari. Até hoje a população convive com o medo da chuva, por exemplo, algo que deveria ser natural e comum. E em meio aos medos e incertezas, também há os questionamentos de o que foi feito e o porquê da demora para alguns assuntos após a enchente.
Venâncio Aires foi atingido em Vila Mariante e Vila Estância Nova pelo rio Taquari; na região baixa da cidade pelo arroio Castelhano e, na região serrana, não houve inundação, mas inúmeros deslizamentos de terra. Com 705 milímetros de chuva apenas em maio, a enchente causou a morte de duas pessoas e deixou 19 feridas. Além disso, 391 precisaram de abrigos públicos e outras 23.235 foram obrigadas a deixar suas residências de forma provisória. Ainda, motivou o cancelamento da 17ª Festa Nacional do Chimarrão (Fenachim), o maior evento de Venâncio.
No dia 2 de maio de 2024, o prefeito Jarbas da Rosa chegou a afirmar: “É um recomeço nesses 133 anos que Venâncio vai fazer. Praticamente é riscar do calendário e colocar assim: ano número um”. A partir disso, como Venâncio vem se recuperando e se organizando para o futuro? O que já foi feito, o que ainda precisa e qual o sentimento das pessoas nesse ‘ano um’ pós-enchente.
“Aqui é a nossa terra”
Vila Mariante, no interior de Venâncio Aires, ainda vive o pós-enchente. A localidade foi ‘varrida’ pelas águas do rio Taquari entre os dias 1º e 3 de maio do ano passado. Das ruas e prédios como os moradores conheciam, pouco sobrou. E um ano depois, a vista do segundo distrito segue com ares de destruição e abandono.
Em meio ao medo de uma nova cheia e as oportunidades com os programas Compra Assistida, da Caixa Econômica Federal, e Aluguel Social, oferecido pela Prefeitura por 18 meses, o número de moradores que retornou é pequeno. Contudo, quem voltou tem orgulho de falar da “nossa terra”.
Entre estes está a agricultora Carmem Inês Junqueira da Silva, de 55 anos. Moradora de Itaipava das Flores, no segundo distrito, desde 2006, ela relembra os momentos de angústia antes da enchente. “Em setembro e novembro [cheias de 2023], ficamos no segundo piso da casa. Até alguns vizinhos vieram se abrigar junto. Mas na de maio, não arriscamos e saímos antes de fechar a rua.”
Carmem mora junto com o marido Juarez Araújo da Silva, de 71 anos, os pais Ênio e Maria Clotilde Junqueira, os dois com 81 anos, além da filha Manoela, de 18 anos, e o genro Henrique de Almeida Rosina, de 22. Com a água ainda subindo, a família ficou na casa de amigos em Linha Taquari Mirim no primeiro dia, mas acordou cercada pela água e decidiu ir para Venâncio Aires, na casa de parentes. “Ficamos quatro dias e depois fomos para General Câmara, na irmã do Juarez. Alugamos lá quase três meses e depois decidimos retornar.”
Antes, visitaram a residência em Mariante para limpar e descobriram que as águas cobriram o teto da casa, “como essa [enchente] ninguém nunca tinha visto e espero que não venha mais”, afirma a agricultora. Além do prejuízo de móveis, a casa de Ênio e Maria Clotilde, no mesmo terreno, também se perdeu. A 50 metros de distância, em um vizinho, o imóvel se alojou, entre árvores. “A força da água foi tão grande que levantou a casa e carregou inteira”, explica Carmem.
Junto da casa, no terreno abandonado, avança a vegetação, que retoma o espaço onde antes havia vida humana. A família planta milho e conta que pouco recebeu de auxílio para se recuperar. “Perdemos a plantação em setembro, novembro e em maio. Não tivemos nenhuma ajuda dos governos, foi tudo por nossa conta. Só não temos coragem de comprar novos móveis, apenas adaptei alguns e ganhei outros”, completa.
Poucos vizinhos
Andar pela ERS-130 em Itaipava das Flores parece cenário de filme, com vegetação alta e casas destruídas. Poucos vizinhos de Carmem tiveram a coragem de retornar, mas eles decidiram pela volta. “Nossas vidas e terras estão aqui. Não tem como não voltarmos.” No entanto, ela considera que uma casa em um lugar mais alto e seguro seria o ideal, mas a um preço justo pela compensação das terras em Mariante. Enquanto isso, a apreensão se mantém a cada chuva mais prolongada. “Dá medo. Mas sabemos que todos estão unidos para ajudar”, finaliza.
Retomada do comércio
Ponto de referência no segundo distrito, a Agropecuária Paraíso retornou após a cheia. A proprietária Leonice Garcia da Rosa afirma que a água passou 30 centímetros do forro do estabelecimento e houve perda total dos insumos. “Era apavorante quando voltamos e começamos a limpar. Com o apoio de amigos e familiares, decidi abrir novamente”, explica.
Para garantir segurança financeira, também optou por adquirir um espaço em Vila Estância Nova para uma filial, enquanto a retomada em Vila Mariante engatinhava. “De um mês para cá, o movimento aumentou. Poucas pessoas voltaram, mas alguns estão animados arrumadas as moradas para talvez voltar um dia”, afirma, empolgada.
O sentimento, segundo Nice, como carinhosamente é conhecida, é de maior união e apoio da população, tanto de quem mora na região quanto de fora do município. No entanto, o que ainda fica é a incerteza quanto a possibilidade de novas cheias. “O medo acompanha a gente e não podemos nos comparar com outros lugares. Precisamos tentar continuar. O Mariante está bem e ficará cada dia mais saudável”, diz.
Números da enchente em Venâncio
• 23.647 pessoas atingidas.
• 391 pessoas em quatro abrigos: ginásio de Linha Mangueirão, Sercsate (bairro Santa Tecla), Comunidade Nossa Senhora de Lourdes (Vila Estância Nova) e em Linha Herval.
• 2 mortes (Delso Bergenthal, de 75 anos, e Cleci Bergenthal, de 72 anos, residentes de Linha Picada Mariante).
• 705 milímetros de chuva em maio.
• 33,35 metros alcançou o rio Taquari em Lajeado (não havia uma medição oficial em Mariante).
• 227 casas destruídas, 57 unidades adjacentes (alto risco) e 25 moradias rurais.
“O mais básico que pedimos ainda não foi feito”
Na parte baixa da cidade, onde há indústrias e comércio, a água do arroio Castelhano avançou sobre os bairros União, Morsch e Battisti. Quando a água retrocedeu, foram vários dias de limpeza e de contagem dos prejuízos. Já em junho, um movimento ganhou corpo entre empresários, que se uniram para sugerir e pedir por medidas para reduzir os impactos das cheias. “Passaram 365 dias e o mais triste de tudo isso é que o mais básico que nós, empresários da ‘baixada’ pedimos, ainda não foi feito. Pedimos que o arroio fosse desassoreado, que a tubulação fosse limpa, que a RSC-453 tenha um projeto de pontes secas e, até o momento, nada disso foi feito”, lamenta Cristiane Klock, proprietária do Comercial Klock.
O prédio da empresa, construído em 1975, é 1,2 metro mais alto que a calçada, e ainda assim teve 1,2 metro de água dentro da loja. “Tivemos, inclusive, uma enxurrada em fevereiro de 2025, onde a água não escoou, mesmo o Castelhano com pouca água. Isso aconteceu por vários motivos, sendo um deles as tubulações entupidas. Ou alguém pensou que a enchente levou o lodo embora? Assim como estava dentro das casas e na rua, o lodo está dentro das tubulações, impedindo a passagem da água”, observa Cristiane.
A empresária, que não esconde a insatisfação com o poder público, afirma ainda que conseguiram se recuperar. “Aqueles dias não sairão mais da nossa memória, pois foram cenas avassaladoras. Ver a água entrando nas casas e empresas, é um sentimento inexplicável. Mas aprendemos o quanto somos fortes e que Deus não nos abandona, nos dá força, coragem e discernimento para seguirmos em frente. A Comercial Klock hoje está novamente estruturada e com uma filial em Lajeado. É muito bom saber que temos amigos, clientes e parceiros de negócios que nos apoiam e nos fortalecem na hora em que precisamos.”
Mudança na agência do Sicredi
Dos diversos empreendimentos prejudicados no ano passado, a agência da Cooperativa Sicredi Vale do Rio Pardo, localizada na rua Osvaldo Aranha, permanece atendendo no mesmo espaço. No entanto, ainda em 2024, a diretoria anunciou a intenção de mudar de endereço. Isso porque a atual unidade demandaria um investimento de aproximadamente R$ 1 milhão para restabelecer o local no formato que tinha antes. Segundo o presidente da cooperativa, Heitor Petry, havia um encaminhamento para uma nova área, a poucas quadras da atual agência, mas ele não evoluiu. “Ainda estão analisando a melhor estratégia para frente. Temos preocupação com a agência, mas no momento ela consegue atender bem os associados dentro da estrutura”, destaca Petry.
“Todas as pessoas têm que ter seu lar definitivo”, afirma Jarbas
Há um ano, quando testemunhamos, sem acreditar, a água destruindo casas, empresas, comércio, escolas, lavouras, pontes e estradas, levando embora milhares de histórias, uma preocupação já se instalava: o que o novo cenário pós-enchente deixaria como desafios para a comunidade?
Com mais de 30% da população impactada e cerca de 90% do mapa dos ‘tingido’ de água barrenta, no dia 2 de maio o prefeito Jarbas da Rosa chegou a afirmar que o município teria um recomeço em 133 anos de história e que o calendário de 2024 seria considerado uma espécie de ‘ano um’. E, nesse ‘ano um’ pós-enchente, onde marcas ainda são visíveis e há muito trabalho por ser feito, Jarbas destacou que a prioridade, hoje, é continuar investindo na habitação. “Todas as pessoas têm que ter seu lar definitivo.”
Nesse sentido, o prefeito disse que acredita, para as próximas semanas, que haverá novidades sobre as futuras casas na área do antigo IPM. “Acreditamos que nas próximas semanas começam a construir. Toda documentação que precisava, está tudo liberado. Está sendo contratada a empresa urbanística e o Estado pode começar as construções concomitantes com a urbanização. Então acredito que nas próximas semanas já tenham novidades.”
O prefeito reconhece que há situações demoradas em relação a projetos habitacionais, mas se diz feliz pelo trabalho da Prefeitura em conseguir, com recursos próprios, encaminhar o aluguel social para centenas de famílias, para que não ficassem muito tempo em abrigos provisórios. “A gente não abre mão da dignidade e do conforto das famílias. Habitação é complexa e demorada, mas ninguém está sem lar e estão todos assistidos.”
Jarbas também falou dos reflexos da enchente e que a previsão de reconstrução e de recuperação, também do ponto de vista mental, pode levar muitos anos, mas que a comunidade já está mais forte, mais resiliente e mais preparada. “Ninguém quer se se repita, mas todos crescemos.” O prefeito também comentou que o Executivo espera lançar, nas próximas semanas, um plano de contingência municipal, com todas as orientações para futuros gestores e comunidade, sobre diversas situações críticas, além de enchente.
Para maio de 2026, quando serão dois anos da maior tragédia climática do estado e de Venâncio, Jarbas da Rosa disse que espera ver todos novamente no próprio lar. “Que todas as famílias já estejam nas suas casas definitivas, que não tenha ninguém no aluguel social, que todas as pontes estejam recuperadas e que todas as famílias diretamente atingidas já tenham, pelo menos parcialmente, reconquistado o que perderam.”
23.647 – pessoas foram afetadas pela tragédia climática em Venâncio Aires
O que foi feito
• Nas primeiras semanas após o evento climático, o Governo Federal anunciou, entre outras medidas de ajuda, o Auxílio Reconstrução, um Pix de R$ 5,1 mil para as famílias vítimas das enchentes. Em Venâncio Aires, conforme a Secretaria Municipal de Planejamento e Urbanismo, foram 2.772 cadastros habilitados diretamente e outros 2.174 que receberam o valor após visita e comprovação da residência por meio da Defesa Civil municipal. Ainda são 286 em análise e 11 que necessitaram de ação judicial do Município para liberação.
• Com relação ao plano diretor, a secretária de Planejamento e Urbanismo, Deizimara Souza, explica que o estudo hidrológico na região urbana é desenvolvido pelas secretarias de Meio Ambiente, Sustentabilidade e Bem-estar Animal, e Infraestrutura e Serviços Públicos. Este levantamento inicial é um pedido da Caixa Federal para o desenvolvimento do novo plano diretor. Para Vila Mariante, o Governo Federal concluiu em março um estudo geológico, que definiu as condições do solo, áreas de inundação e outros – este projeto deve ser divulgado em breve.
• Atualmente, a Prefeitura mantém uma comissão especial para analisar reconstruções em Vila Mariante. O grupo conta com profissionais das secretarias de Meio Ambiente, Infraestrutura e Serviços Públicos, Desenvolvimento Econômico e Procuradoria Jurídica. A análise é caso a caso.
Projetos habitacionais para vítimas da enchente
O primeiro projeto habitacional anunciado após a enchente de maio foram as 72 residências no antigo Instituto Penal Mariante (IPM), em Vila Estância Nova. O prédio foi demolido e a Prefeitura realizou as obras iniciais de infraestrutura, com a derrubada de árvores e terraplanagem, e encaminhou o projeto urbanístico (realizado por empresa de Tapejara) para aprovação do Estado – responsável pela construção das casas. O local receberá também uma Unidade Básica de Saúde (UBS). “Vamos entregar com infraestrutura pronta para morar desde o primeiro dia”, destaca a secretária de Planejamento e Urbanismo, Deizimara Souza.
A Escola Estadual de Ensino Médio Mariante, que teve o prédio destruído por conta da enchente do rio Taquari, foi desativada definitivamente no final do último ano letivo. As atividades do educandário não foram retomadas após maio e os alunos foram transferidos para Escola Adelina Isabela Konzen, em Vila Estância Nova.
Os demais projetos seguem, conforme a secretária, o cronograma normal. São 30 casas no bairro Brands, pelo programa federal Minha Casa, Minha Vida – Calamidade, obra de responsabilidade da empresa venâncio-airense ALM Engenharia, tem projeto de infraestrutura concluído e encaminhado para a Caixa Econômica Federal. Já as 52 casas no bairro Battisti, do programa estadual A Casa é Sua, é desenvolvido pela empresa MTX Construtora e deve ser entregue nos próximos meses. Para finalizar, o residencial Morada das Lavandas, no bairro Aviação, contará com 112 apartamentos pelo Minha Casa, Minha Vida, e tem 57% da obra completa e pode ser entregue ainda neste ano – projeção inicial era de conclusão até o primeiro trimestre de 2026.
Dos 309 nomes enviados pela Prefeitura para a modalidade Compra Assistida (309 unidades habitacionais informadas como destruídas), 41 foram habilitados até o momento – dados até segunda, 28. Segundo a Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Social, a Caixa Federal convocou 27 beneficiários na modalidade urbana (até R$ 200 mil), quatro beneficiários na modalidade provisão financiada em áreas urbanas (famílias com renda maior que R$ 4,7 mil) e 10 beneficiários dos imóveis na modalidade rural (até R$ 86 mil). Desses 41, apenas nove assinaram os contratos e 25 estão em processo de andamento na Caixa, para efetivação da assinatura do contrato. Já no aluguel social, são atuais 225 famílias.
* Por Leonardo Pereira e Débora Kist