Seu Arnaldo saiu de casa de manhã a contragosto. Ele já não sente mais prazer em dirigir como antigamente. Apesar de se sentir forte e saudável nos seus 70 anos, acha que o trânsito da cidade está muito complicado. Andando na General Osório a 40 km, como manda a lei, se vê cercado por uma penca de motos ultrapassando-o por todos os lados a 80 km e ainda avançando o sinal vermelho.
No cruzamento da General com a Osvaldo Aranha, se obrigou a parar quase no meio da pista, porque uma moça enveredou pela faixa de pedestres sem olhar para os lados, lendo alguma coisa no celular, e justamente sobre a faixa ela resolve parar para digitar alguma resposta. Seu Arnaldo, que acha que pedestre também deveria ter freio para não se aventurar quando um carro já está praticamente em cima da faixa de pedestres, então dá uma buzinadinha educada para que a moça termine a travessia. Qual o quê! A referida vira-se para ele com uma cara furiosa e grita: “Não tá vendo que eu tô na faixa de segurança, velho barbeiro?!”.
Seu Arnaldo se sente ofendido, com vontade de processar a moça por crime de preconceito contra idade, o tal etarismo, mas aí teria que persegui-la rua abaixo, e desiste. Nisso, toca o telefone, ele não pode atender porque está dirigindo, talvez seja um dos poucos que respeite essa lei, vê que o número é desconhecido, por certo daquelas falsas centrais de bancos, cartões de crédito, lojas e o escambau, querendo avisá-lo de uma suposta compra, sempre falsa, e instruindo para clicar no ‘saiba mais’ e depois tomar um tufo na sua conta bancária.
Conta bancária, aliás, que vem há anos sendo roída por um desconto indevido na aposentadoria do INSS, cujos valores já foram devidamente creditados em contas laranjas de gente graúda, e que agora ninguém sabe como devolver.
Mas seu Arnaldo chega ao destino, que é o mercado, onde pretende comprar uma carne de gado para fazer um carreteiro. Frango é mais barato, mas ele anda meio desconfiado com a gripe aviária, principalmente depois de ouvir uma vizinha com uma tosse muito feia, parecia um cacarejo. E, se a China não quer mais os nossos frangos, é porque a coisa está feia, pois dizem que lá comem qualquer bicho que se mexa. No balcão do açougue, ele sempre brinca com o açougueiro perguntando se já chegou a picanha do Governo. Não chegou, nunca chega. Então, ele compra um pedaço de coxão mole.
De volta em casa, enquanto ele mesmo frita a carne do carreteiro, resolve dar uma olhada no celular e logo já aparece um vídeo do Lula abraçando o Bolsonaro, sorridentes, outro vídeo com o Trump dançando uma valsa com o Xi Jinping, enquanto Putin e Zelensky saboreiam um estrogonofe. Arnaldo sacode a cabeça, irritado com ‘esses políticos’ que se xingam e depois andam abraçados. Mas em seguida já lhe aparece um ‘bebê reborn’ com a cara do Lula, ao lado de outro com a cara do Bolsonaro, um tentando tirar a mamadeira do outro. Aí, seu Arnaldo conclui que aquilo é a tal de inteligência artificial. Então, ele finalmente acredita que não pode acreditar em mais nada que vê na internet.
Enquanto corre ligeiro para mexer a carne que já está queimando na panela de ferro, seu Arnaldo se pergunta se ainda há lugar para uma pessoa normal como ele neste mundo que ninguém sabe mais onde irá parar.