“Quero construir a vida em Venâncio e retribuir o que fizeram por mim”

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Maria Aparecida Jardim Paim, 66 anos, chegou em Venâncio Aires em 31 de maio de 2024, com os documentos e as poucas peças de roupa que conseguiu salvar da enchente. A maior catástrofe climática da história do Rio Grande do Sul, que teve grande impacto em Venâncio, também varreu o bairro Rio Branco, em Canoas, onde ela morava praticamente a vida toda.

Pouco mais de um ano depois, no apartamento alugado, no Centro da Capital do Chimarrão, onde vive com os dois gatos e os poucos móveis que, orgulhosamente, já conseguiu comprar, Cida constrói uma nova história. E essa história é embalada de força e gratidão. Em uma agenda, anotou os nomes das tantas pessoas que, de alguma forma, estenderam a mão ao longo dos últimos 13 meses. Ela não esconde o carinho pela cidade que escolheu para refazer a vida.

“Quem passa por uma tragédia não fica se vitimizando. A gente aprende a olhar de outra forma. Sou muito grata a Venâncio Aires, às pessoas que encontrei e que também tinham suas histórias e desafios, mas estavam dispostas a ajudar. Fui acolhida pela cidade.”

Para Cida, a cidade a acolheu de forma tão especial, que não cogita ir embora. Há cerca de um mês, a funcionária aposentada da Ceee, onde atuou por 22 anos, começou a trabalhar em uma padaria. Está adorando o trabalho. Aos poucos, traça um novo caminho como venâncio-airense e faz planos: até os 70 anos, pretende estar em uma casa própria, um espaço com pátio ou uma sacada, onde os gatos Lorde Boris Chorão e Princesa Berin – seus companheiros fiéis – possam passear livremente. “Eu não tomo chimarrão, mas já brinquei com o pessoal da imobiliária que quero achar um lugar com varanda para sentar e aprender a tomar chimarrão.”

A gratidão de Cida

Cida faz questão de agradecer ao município que a acolheu, à rede de apoio que permitiu a ela ter o que vestir, onde dormir e dar sequência ao tratamento do câncer de mama que estava em andamento quando a água invadiu a casa dela.

A enchente foi mais um dos capítulos tristes vividos por ela nos últimos anos: a primeira foi em 2011, com a morte do ex-marido, com quem mantinha relação próxima e de boa convivência, após um infarte fulminante. Após um longo período de depressão, o maior baque veio com o falecimento do único filho, Carlos Eugênio, em maio de 2022, em decorrência da Síndrome de Guillain-Barré, após quase um ano de internação em Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Pouco mais de um ano depois, em outubro de 2023, após uma mamografia de rotina, foi surpreendida com o diagnóstico de câncer de mama do tipo BI-RADS 2. A retirada do tumor da mama direita ocorreu em 8 de fevereiro de 2024 e, menos de três meses depois, no início de maio, na consulta preliminar à segunda quimioterapia, saiu de casa sem saber que não retornaria e se tornaria uma das milhares de gaúchas desalojadas pela enchente.

No condomínio fechado onde morava, no bairro Rio Branco, em Canoas, a água nunca tinha chegado. Ela até achou exagero a preocupação da irmã Dina Mara, que morava próximo. “Tinha deixado uma mala de roupas pronta, porque minha irmã estava preocupada, mas eu não imaginava que a água alcançaria 6,5 metros dentro de casa.” O que não foi destruído com a enchente, foi saqueado. Do antigo lar, Maria guarda apenas duas caixas plásticas com objetos que conseguiu resgatar.

Ao longo de 28 dias, permaneceu com a família da irmã na casa de amigos, em Canoas. Naquele período, já tinha definido Venâncio Aires como o local para recomeçar a vida, apesar da insistência de familiares para que permanecesse na cidade onde vivia desde criança. “Tinha certeza que era para Venâncio que queria ir. Minha irmã mora na cidade há quase 40 anos e sempre gostei do lugar, já pensava em me mudar. Não sei explicar, mas é onde me sinto bem. Quero construir a vida e retribuir o que fizeram por mim.” A chegada à Capital do Chimarrão foi de ônibus, em um trajeto que durou quatro horas, passando pelo corredor humanitário, com autorização especial para sair de Canoas. O percurso ocorreu pela BR-386, por Lajeado, já que a RSC-287 ainda estava interrompida, em Venâncio Aires, após trechos da rodovia terem colapsado com a força da água, próximo à Vila Mariante.

A força como legado

Sobre a motivação para seguir de cabeça erguida, em meio a tantos desafios, Maria Aparecida cita a neta Isabelli, 17 anos, que mora com a mãe Simone, em Florianópolis, em Santa Catarina. “É o legado que posso deixar. Um exemplo de força para ela. E também pelo meu filho. Com certeza, ele não gostaria que eu sucumbisse”, considera.

Incentivada pela psicóloga Mônica Ostermann, que a atende voluntariamente, desde o ano passado, por meio de um projeto voltado a pessoas atingidas pela enchente, ela projeta escrever um livro com sua história e “sobre o amor a essa cidade e o quanto me sinto bem aqui”.

Um coração, muitos agradecimentos

Cida anotou em uma agenda os nomes de dezenas de pessoas a quem quer agradecer. É uma lista extensa. A começar pela família: a irmã Ana Lúcia e a sobrinha Ariane, que a acolheram na chegada em Venâncio Aires, foram e são um suporte importante. Também faz questão de citar amigas como Vilsonia Fagundes, Iria Gerhardt, Lecir e Marília Schuh.

“Também muitas pessoas que viraram amigas por conta do trabalho delas. Proprietários e funcionários de estabelecimentos comerciais que não mediram esforços em me ajudar. O comércio de Venâncio Aires é muito solidário”, ressalta, ao citar as condições de pagamento facilitadas e a confiança em alguém recém-chegada na cidade, que não tinha como pagar por móveis, roupas e utensílios.

Entre eles, menciona Fabiane e Pedro, da Renovar Móveis; Vânia; da LM Móveis, Tamirez Hermes, da LB Imobiliária; Daiane Reis, Loriane Gollmann e Yaçanã Vieira da Rosa, da loja Sulfábricas. “Quando fui comprar roupas no brechó da Sônia, saí de lá com uma sacolada de peças que ela me deu”, acrescenta. Outro reconhecimento de Cida é à cabeleireira Sandra Sehn, pelo corte e as dicas por conta da queda de cabelo, em função da quimioterapia. Da mesma forma, ela guarda com carinho o atendimento “das gurias da Farmácia Pharmabella, incansáveis na busca pelos remédios e nas injeções que precisavam ser feitas em horários específicos”.

Outro auxílio que emociona Maria Aparecida é o do veterinário Lucas Frederico Kappaun, que cuidou do gato Chorão, resgatado em Canoas, depois de mais de um mês e meio após a enchente. “Só no fim de julho, depois de vizinhos me avisarem que ele estava por lá, consegui ir buscá-lo. Foi muito difícil a adaptação dele na nova casa. Sou muito grata por recebido todo o atendimento da LatMia e do Lucas”, comemora.

Tratamento do câncer

Na história de Maria Aparecida Jardim Paim, o tratamento contra o câncer tem um capítulo especial. Recém-estabelecida em Venâncio, no ano passado, ela ainda tinha pela frente duas sessões de quimioterapia e 18 de radioterapia – essas, com deslocamento diário até o Hospital de Clínicas, em Porto Alegre.

“Fui muito bem atendida na Secretaria de Saúde. Expliquei que era de Canoas, que tinha me mudado em função da enchente e nunca me questionaram. Simplesmente garantiram o transporte para que eu pudesse fazer o tratamento”, relata, emocionada.

“Sou muito agradecida aos motoristas Marcos, Emerson, Fábio, Alex e Jaul, dos carros; ao Aldair e à Cleusa, da van; e ao Fernando Emanuel da Rosa, que era responsável pelo transporte. Não conheço o secretário de Saúde nem mesmo o prefeito, mas tenho certeza que são pessoas boas, que passam essa orientação de um bom serviço. Todos que me atenderam são incansáveis, fazem muito mais do que sua obrigação”, celebra.

Ela recorda com carinho, também, da atuação dos motoristas Cléber e Ismael, da Dimac Materiais de Construção, que a auxiliavam a ir de casa até o transporte da secretaria. “Moro no quarto andar e, em muitas vezes, mal conseguia caminhar. Eles praticamente me carregavam. Graças a essas pessoas consegui concluir o tratamento.”



Juliana Bencke

Juliana Bencke

Editora de Cadernos, responsável pela coordenação de cadernos especiais, revistas e demais conteúdos publicitários da Folha do Mate

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