Os 90 anos do Négo: uma história que ninguém nega

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Négo celebra nove décadas neste domingo, 29, e olha para o futuro com os planos de reestruturação da nova diretoria.

Uma das entidades mais tradicionais de Venâncio Aires completa 90 anos neste domingo, 29. A Associação Négo Futebol Clube chega a nove décadas de uma história carregada de simbolismo, de tradição e de muitos objetivos para o futuro. Ainda mais agora, em que uma nova diretoria será empossada e pretende fazer uma reestruturação física e de projetos na entidade.

Mas esse futuro que se pretende construir será trilhado, também, considerando tudo o que já passou. Afinal, é uma trajetória que não pode ser negada: uma história que começou pela insatisfação de um homem que não tolerou o racismo. Não que a década de 1930, onde essa história iniciou, fosse muito diferente dos tempos de hoje, em que a sociedade continua se dividindo pelas ideias, por questões culturais e étnicas. Mas na Venâncio de 90 anos atrás, onde a comunidade negra era proibida de frequentar clubes e festas tradicionais do município, João Generoso dos Santos (1884-1982) foi o homem que, ao dizer não para o racismo, disse sim para um espaço de respeito e representatividade.

Négo, com acento no E

João Generoso dos Santos, fundador do Négo (Foto: Arquivo pessoal)

Uma das indignações do antigo funcionário público foram os xingamentos gratuitos ao jovem Ataliba Rodrigues, então goleiro do Esporte Clube Guarani. Em qualquer derrota do time, a torcida jogava a culpa nele e o insultava com palavras racistas. “Eu me nego a ouvir isso! Me nego a aceitar esse racismo!”, exclamava João Generoso. Além disso, com o impeditivo de frequentar determinados lugares, decidiu que era o momento de criar um espaço para os negros.

Foi de tanto ouvir o amigo e futuro compadre dizer “eu me nego a aceitar esse racismo”, que Helena Emília de Brito Goulart (que seria primeira-dama de Venâncio, já que era casada com Salvador Stein Goulart, prefeito na década de 1960), sugeriu: “Por que não coloca o nome de Négo? E coloca com acento no E”. Assim, em 29 de junho de 1935, foi criada a Sociedade Négo Football Club São Sebastião Mártir. Assim mesmo, com termos em inglês e com o nome do santo, que foi incluído porque João Generoso era muito devoto do padroeiro de Venâncio.

Registro de 1935, quando foi feito o primeiro baile do Négo. Ao fundo, ficava a casa de João Generoso dos Santos (Foto: Arquivo pessoal)
Leobaldo Rodrigues, o Tio Beco, uma das maiores referências do Négo (Foto: Arquivo pessoal)

Sede do Négo tem quase 50 anos

Inicialmente, o fundador do Négo manteve uma bailanta na própria casa e como o movimento foi crescendo, houve a necessidade de um novo espaço. Essa nova sede ficava na rua Emiliano de Macedo, no bairro Cidade Alta. Anos depois, houve a construção do atual prédio, na rua Engenheiro Henrique Vila Nova, ainda no Cidade Alta, concluído em 1976. Eram tempos do presidente Erno Heitor Leal (Tourinho) e a inauguração contou com a presença do então prefeito Rony Mylius.

A importância dos projetos culturais

Ao longo da história do Négo, já foram diversos eventos promovidos pela entidade, especialmente aqueles com foco na cultura. Beatriz dos Santos, 63 anos, é uma lajeadense que se mudou para Venâncio há mais de 30 anos e, desde então, ‘respira’ o Négo. Ele destaca a importância das várias atividades realizadas, muitas delas dedicadas às crianças. “Num Bate-Papo Pilhado, com a Folha do Mate, tivemos 350 estudantes aqui. Promovemos jantares afro e houve um dia que fizemos uma espécie de ‘mini Enart’, quando a Gabrielli da Silva Pio, 1º Prenda negra do Rio Grande do Sul, esteve no Négo”, lembra Beatriz. Essa ação teve o apoio do professor Jair Pereira.

Segundo Beatriz, uma das maiores características da sociedade sempre foi a parte cultural. Por isso, ela entende que essas ações precisam ser retomadas. “Precisamos aproveitar o Négo para eventos culturais, trazer projetos com escolas. Temos que sonhar alto para o futuro. E entendo que, quando uma ideia vai para o papel, ela tem que acontecer. Quando penso no Négo, penso em ancestralidade, respeito, sabedoria e representatividade. Palavras fortes, como é a sociedade.”

Beatriz também levou a filha para dentro do Négo: Riciele Fabíola Lopes, hoje com 33 anos, foi Mulata Café em 2008. Hoje, o marido de Riciele, Ederson Padilha, e as duas filhas, Kyara, 8 anos, e Kendra, de apenas quatro meses, já convivem na sociedade, para alegria da vó Beatriz.

Um dos concursos mais tradicionais do Négo, as escolhas do Mulata Café. O registro é de 2006 (Foto: Arquivo pessoal)

“O que sinto pelo Négo é tão grande que não sei explicar”

Cleny da Rosa, 77 anos, está no Négo, conforme as próprias palavras, “desde sempre”. Filha de Avelino Lopes, amigo de João Generoso, a aposentada lembra da disposição dos bancos no salão da bailanta que funcionava na casa do fundador. O marido dela, João Arli da Rosa (já falecido), foi vice-presidente do Négo quando a entidade era presidida por Leobaldo Rodrigues (Tio Beco), outra figura emblemática na história. Tio Beco foi um dos grandes incentivadores do Carnaval de Venâncio e da Acadêmicos do Samba Négo. Ele também criou o nome ‘Rua Grande’, para se referir à rua Osvaldo Aranha nos festejos carnavalescos.

Sobre o Carnaval, aliás, Cleny foi uma das costureiras oficiais por quase 60 anos. “Teve duas noites que dormi em cima dos panos”, lembra, entre risos. Os quatro filhos dela acabaram, também, crescendo dentro da entidade. Entre eles, Sandra Helena da Rosa, hoje com 57 anos. Sandra foi Mulata Café Regional em 1983. Também costureira, é, há muitos anos, porta-estandarte nos desfiles de Carnaval. Outra filha de Cleny, Roberta Aline da Rosa, hoje com 40 anos, foi eleita A Mais Bela Negra do Rio Grande do Sul em 2008.

Ao olhar para o passado e pensar no futuro, Cleny diz que seu maior orgulho é sentir que a entidade está viva e forte. “Toda vez que chego na frente da sede, que entro aqui, não sei dizer. O que sinto pelo Négo é tão grande que não sei explicar. Só sinto algo grandioso dentro do meu peito.”

Négo foi percursor na criação do Carnaval de rua de Venâncio. No registro, quando Fernanda Landim foi rainha, em 2006. Em 2010, ela foi princesa da Fenachim (Foto: Arquivo pessoal)

Encontro com a família

Rui Barbosa dos Santos, 44 anos, conta que o Négo é, para ele, toda a história da família, afinal, os bisavós maternos já tiveram envolvimento, nos tempos de João Generoso. “Depois disso, meu vô paterno, Avelino dos Santos, presidia um clube de negros em Santa Cruz, o Operário. Aí ele e o cunhado [Tio Beco] trocavam visita. Tinha esse intercâmbio com o Négo.” Além disso, o pai de Rui, Paulo Roberto dos Santos, conhecido como Barbosão, conheceu a esposa, Yara, num baile do Négo. “Eu também conheci minha esposa no Négo. A Daiane é de Porto Alegre e nos encontramos num baile. Por isso que sempre digo que o Négo é onde encontro toda minha família.” Do casamento com Daiane, nasceram os filhos Yuri e Isadora.

Rui também vestiu por muito tempo a camisa de futebol do Négo, quando a equipe mandava os jogos no campo do Cruzeiro. Músico, tocou diversos instrumentos na bateria da escola de samba. “Passei por todos os mestres: Dadá, Saulo, Felipe, Pablo e Diórgenes.”

“Nesses 90 anos, ainda estamos aqui”

No ano em que o Négo completa nove décadas, a responsabilidade de assumir a entidade nesse novo ciclo caberá a alguém que tem uma relação de sangue e de dedicação com a entidade. Isabel Landim, 70 anos, foi eleita presidente dia 15 de junho. Ela volta ao cargo depois de 15 anos. Antes disso, esteve na presidência entre 2005 e 2010 – foi, aliás, a primeira mulher a presidir o Négo.

Maria Elisete, Isabel e Jaqueline integram a nova diretoria da associação. A posse será hoje, durante o jantar-baile de aniversário (Foto: Divulgação/Négo)

Filha do fundador, João Generoso, Isabel entende que, para além dos laços familiares, a preocupação é com um resgate da história de todos que já passaram pela entidade. “Nesses 90 anos, ainda estamos aqui, com objetivo de fazer uma grande reestruturação física e de projetos, e conscientizar as pessoas para voltarem ao Négo. Trazer novamente as crianças e tantas ações lindas que já fizemos, além de outras ideias para promover a cultura.”

Uma das prioridades dela é concluir a quadra de esportes, que fica nos fundos da sede, iniciada na administração anterior da presidente eleita. O local tem apenas telhado e piso bruto, e o objetivo é fechar a estrutura e construir uma quadra para prática esportiva. “Além do esporte, o espaço será usado para os projetos que queremos fazer com as crianças. É meu principal objetivo.”

Mulheres

Isabel terá como vices mais duas mulheres: Jaqueline Gonçalves dos Santos, que já foi madrinha de bateria da Acadêmicos do Samba, diretora Social, diretora de Carnaval e carnavalesca da entidade, e Maria Elisete Ferreira, que muitos anos foi tesoureira da associação, integrou diferentes departamentos e desde o início do ano está como presidente interina da entidade. Maria Elisete também integra o Baobás, um grupo de amigas que tem, em comum, muitas histórias dentro da sociedade. As Baobás desenvolveram o projeto ‘Histórias de Resistência do Négo Foot Ball Club’, criando as galerias dos ex-presidentes e das Mulatas Café.

Carnaval 2026

Um dos objetivos da nova diretoria também é a retomada do Négo nos desfiles de Carnaval, já que a escola de samba não desceu a ‘Rua Grande’ em 2025. Conforme Isabel, nesse intuito do resgate histórico, ela revela que também há intenção, se assim for possível, de incluir novamente o nome São Sebastião Mártir e que volte a ser ‘sociedade’.

Uma das prioridades de Isabel Landim é concluir a quadra de esportes da entidade (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Jantar-baile

Para marcar as nove décadas, ocorre hoje um jantar-baile, a partir das 20h30min. Na programação da noite estão previstos janta, posse da nova diretoria, celebração dos 90 anos e a música ficará a cargo do Pagode do Dorinho e Grupo Misturaí. Não há mais cartões disponíveis para o jantar, mas ainda é possível participar do baile. Nesse caso, os ingressos antecipados custam R$ 25. Eles podem ser adquiridos com alguns integrantes da diretoria e nos seguintes pontos de venda, até as 11h: Loja Am Store, Barbearia do DJ, JS Celulares, Salão da Nega e Banca Bira. Na hora, o ingresso custará R$ 30.

No estado são mais de 80 clubes sociais de negros em atividade e o Négo integra, junto com outras sete entidades, o Coletivo dos Clubes Sociais Negros do Rio Grande do Sul.

80 – é o número atual de associados ativos do Négo.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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