O mundo se despediu de Niki Lauda na última segunda-feira. Aos 70 anos, o tricampeão mundial de Fórmula 1 nos deixou – não sem antes escrever uma história brilhante. Muita gente conheceu o austríaco no divertido filme Rush, de 2013, rodado pelo cineasta Ron Howard, que conta a épica batalha pelo título de 1976, estrelada pela rivalidade entre o então piloto da Ferrari e o britânico James Hunt, da McLaren.
Mas o que diabos a história de um piloto faz na coluna de música? Veremos a seguir.
Lauda nasceu em berço esplêndido. Sua rica família era em absoluto contra sua carreira no automobilismo, o que ele dizia ser a única coisa a de fato despertar seu interesse. Depois que os pais souberam pelo jornal que o filho vencera uma prova de subida de montanha, expulsaram-no. Era preciso escolher entre a família e as corridas. A decisão era óbvia: chegava a hora de perseguir o sonho de ser o melhor naquilo que amava.
O austríaco se entupiu de empréstimos bancários – um deles, de gordos 100 mil dólares para a época, no início dos anos 70, foi barrado por influência do avô. Suas duas primeiras temporadas na Formula 1, em 1971 e 1972, foram frustrantes. Após uma dura discussão com seu então chefe na equipe March, Max Mosley, sentiu-se no fundo do poço. Sem família, sem sucesso na sua paixão e naquilo que acreditava, sem perspectiva de conseguir um dia pagar empréstimos que durariam pelo resto da vida.
Niki entrou em seu carro e resolveu pisar fundo na rodovia. Ele sabia onde a estrada terminaria: no muro. Era só seguir em frente e acabar com tudo. Lauda fez o que sabia: acelerou. E acreditou em si. Nos três quilômetros que separavam a sede do time daquela mureta, mudou de ideia. Superar a tentação de acabar com tudo quando parece não haver mais saída, o fetiche mais tacanho que a mente pode nos impor – e que leva daqui muita gente, dos quais muitos são ótimos como ele foi –, foi sua primeira vitória.
As boas atuações no ano seguinte lhe renderam um contrato com a Ferrari. Quase foi campeão em seu ano de estreia pela escuderia, em 1974, quando a taça ficou para Emerson Fittipaldi. Venceu em 75 e faria o mesmo sem dificuldades em 76, quando veio o GP da Alemanha, em Nürburgring. Ele avisou que o circuito não oferecia condições de segurança e se opôs à realização da prova. Foi voto vencido. Na segunda volta, bateu. O carro praticamente explodiu. Quatro pilotos pararam seus bólidos para ajuda-lo. A dor era inimaginável, mas ele ficou de pé para sair de sua Ferrari em meio àquele apocalipse de fogo e fumaça.
O fogo queimou orelha, couro cabeludo, pálpebras – ele mal conseguia piscar – e tudo o mais o que encontrou. Seu rosto estava destruído. Seu pulmão, idem. As quantidades de fumaça tóxica inaladas foram absurdas. No hospital, o padre veio lhe dar a extrema-unção. O reverendo perdeu seu tempo. Lauda sobreviveu. Mais do que isso, apenas 42 dias depois, voltou a correr. E disputou o título até a última etapa. Perdeu pois foi corajoso o suficiente para desistir por falta de segurança numa prova chuvosa no Japão.
Ele venceria o título de 77, se aposentaria, retornaria e seria enfim tricampeão em 84. Jamais se desligou da Fórmula 1. Fora das pistas, trabalhou na própria Ferrari, Jaguar e Mercedes, que ajudou a se tornar este time que ruma para ser o mais dominante da história. Foi quando há alguns meses, seu pulmão, tão açoitado pelo acidente há quatro décadas, adoeceu. Precisou passar por um raro e difícil transplante. A recuperação, em suas próprias palavras, foi bem pior do que o episódio de 76. Mas ele venceu de novo. Pode passar seu último Natal com a família – a construída por ele, não aquela que a expulsou, cá entre nós, com seus motivos, quando ele decidiu seguir seu sonho.
Hunt, seu rival da vida e do cinema, é quem fazia o tipo rockstar: não perdia uma noitada, saía com modelos, bebia, fumava e dirigia carros velozes. Quem era rock’n’roll de verdade, porém, era Lauda. O homem que abandonou a família abastada, resistiu ao suicídio e foi mais forte do que a morte. Aplicar 3 a 1 naquela que, sabemos desde sempre, irá prevalecer ao final, não é para qualquer um.
Mais: uma de suas companhias aéreas, a Lauda Air, batizava seus aviões com nomes de ícones da música. Gente do naipe de Ray Charles, Elvis Presley, John Lennon, Janis Joplin, Miles Davis, Freddie Mercury e Kurt Cobain. Qualquer dúvida sobre a pertinência do assunto neste espaço se dissipa agora.
You rock, Niki. Obrigado por tudo.
PS: a coluna retorna em 15 dias.