Longe dos olhos, perto do coração

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Não existe um cemitério. Não tem lápide, nem túmulo ou uma cruz. Não existe um local fixo para ir chorar, rezar ou lembrar. O que tem são flores e não simplesmente por esta ser uma história de alguém que faleceu, mas porque as plantas que essa pessoa já cultivou, seguem florescendo e colorindo lugares e lembranças.

No segundo Finados sem a mulher que lhes deu a vida, as irmãs Ivana Carine Schwendler, 38 anos, e Josi Fernanda Schwendler, 31, não precisaram daquele ‘ritual’ tradicional às vésperas do 2 de novembro. O motivo? Atenderam a um desejo muito importante da mãe.

Lucilda Herdina tinha apenas 63 anos quando deitou para não acordar mais. Foi numa manhã quente de janeiro, em 2018. “Aconteceu alguma coisa. A tua mãe nunca atrasa.” O alerta era de um ex-patrão de Lucilda, ao ligar para a filha dela, Josi, preocupado que sua faxineira não apareceu.

A caçula, então, resolveu ir à casa da mãe. Na mesa, a bolsa pronta para sair e o relógio de pulso ‘congelado’ às 7h25min. Mas já passava das 8h quando Josi entrou no quarto e encontrou a mãe ‘dormindo’. É provável que, minutos antes, Lucilda tenha se sentido mal, ligou o ar condicionado e deitou. Ela tinha sofrido um infarto.

A partir dali, a reação natural do sofrimento, da dor e do choro se misturou com a necessidade de colocar as ideias em ordem para resolver os trâmites pós óbito. Mas Ivana e Josi sabiam exatamente o que fazer: haveria o velório, mas não o sepultamento, porque elas atenderiam ao pedido da mãe, que queria ser cremada.

Um pedido de liberdade

Lucilda saiu de Linha Lucena, no interior de Venâncio Aires, por volta de 2003. Divorciada, a agricultora decidiu ficar mais perto de ‘suas meninas’. Ainda muito jovem e ativa, começou a trabalhar de faxineira e um dos lugares era uma funerária.

Nela, relata Ivana, viu muitas situações de tristeza, às vezes de demora na liberação de um corpo, e um dia falou às filhas que, quando chegasse ‘sua hora’, queria que fosse o menos sofrível possível. “A gente não gostava quando a mãe falava dessas coisas. Mas sempre foi muito organizada e um dia me contou até onde tinha guardado a carteirinha da comunidade São Lucas [do bairro Aviação, onde ela foi morar]. Tinha tudo em dia, tudo certinho. Dizia que não queria dar trabalho.”

Lucilda, que viveu a maior parte da vida em uma pequena localidade, também lamentava que os cemitérios estavam cada vez mais abandonados e as famílias menores na colônia. Novamente, para ‘não dar trabalho’ com isso, pediu às filhas que, um dia, não guardassem ou enterrassem suas cinzas. Queria ser ‘libertada’ em algum lugar muito bonito ao ar livre.

“Durante muitos anos, a mãe morou em um lugar afastado, vivia oprimida pelas condições difíceis da vida, pouco contato com pessoas. Acho que quando ela se mudou, foi uma libertação, uma renovação e ela queria continuar assim depois”, considera Josi.

MISSÃO CUMPRIDA

Quando Lucilda faleceu, a única opção, portanto, foi a cremação, realizada em Caxias do Sul. De lá voltaram, além das cinzas, um rosário, o par de brincos e um certificado. Só. De quantidade mesmo, havia muitas flores, levadas por amigos e familiares no velório que aconteceu em uma funerária venâncio-airense.

Ivana e Josi viram ali o carinho e consideração que aquelas pessoas tinham pela mãe. Mas, como ela foi cremada, não havia espaço para ornamentação. No dia seguinte, elas levaram as flores ao cemitério de Linha Lucena. Dividiram entre os túmulos dos avós maternos, Elcida e Alcido, e outros parentes sepultados no local. Era o que Lucilda teria feito.

TÚMULO?

Depois da cremação, as filhas realizaram outro desejo da mãe: espalhar as cinzas em um local bonito, de muito natureza. Portanto, não houve enterro. “Não dizem que aquilo que está longe dos olhos, está perto do coração? Para mim é assim com a mãe. Ter um túmulo para lembrar dela não faz diferença para mim, porque a lembrança está muito viva”, destacou Ivana.

Para Josi, que nos últimos dias ajudou uma tia a lavar túmulos de parentes, pensa como a irmã. “Me sinto feliz nas memórias vivas, do que ela fez em vida, e não pensar nela num cemitério.”

Lucilda adorava passeios por lugares de muita natureza e flores (Foto: Arquivo pessoal)

OPINIÃO

Quando a mãe foi cremada, Ivana Schwendler conta que muitos questionaram a decisão. Para ela, o assunto ainda não faz parte da realidade da local, por isso pode ser passível de estranhamento. “Às vezes é uma questão cultural ou mesmo religiosa. Mas independente disso, as escolhas podem mudar. É importante que as pessoas conversem sobre isso, assim como a doação de órgãos, também um assunto com tabus. Mas acho que o último desejo deve ser respeitado.”

LEGISLAÇÃO

Os processos que envolvem a cremação têm normas determinadas, com licenças e autorizações específicas. Mas uma dúvida é sobre o depois, ou seja, o que os parentes podem fazer com as cinzas. Para algumas religiões, a sugestão é que elas sejam enterradas. Mas, no Brasil, não há uma única determinação que regre isso. Em contato com pessoas da área jurídica e crematórios do Rio Grande do Sul, os relatos foram de falta de maiores informações para precisar uma legislação acerca disso.

Rosas vermelhas, as favoritas de Lucilda, continuam florescendo (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Homenagem em formato de rosas vermelhas

Depois do falecimento, Josi trocou seu apartamento pela casa da mãe. A jovem teve algumas motivações para isso e uma delas era cuidar do gato Miu. O bichinho de estimação era o xodó de Lucilda, para o qual ela até fazia questão de comprar bife no açougue.

Mas talvez o maior motivo tenha sido as flores. “A mãe adorava. Tinha tantas, cuidava com tanto carinho. E as rosas vermelhas eram as favoritas”, conta a filha mais nova.

Ivana, que até cultivava as próprias rosas na sua casa, viu o pátio ganhar outra tonalidade. Antes ela tinha brancas e amarelas, mas hoje predomina o vermelho, de mudas que eram da rosas da mãe. “Para dar uma flor nova, basta um galhinho. Repassamos para amigos e eles contam que sempre floresce. É um pouco da mãe que vai indo adiante”, relata a filha mais velha.

Ivana diz ainda que manter o cultivo das flores favoritas de Lucilda é uma espécie de homenagem. “Toda vez que abre um botão, lembro e penso nela. Agradeço por ter sido tão guerreira, por estar sempre disposta a ajudar todo mundo. A mãe não está mais fisicamente com a gente, mas as flores e tudo que ela nos ensinou, isso não morreu. Por isso é tudo muito vivo e assim lembramos dela.”

 



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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