Os planos e sonhos dos venezuelanos que estão em Venâncio Aires

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Desde a semana passada, um grupo de 60 venezuelanos está alojado em uma estrutura às margens da RSC-453, em Linha Travessa. São refugiados que vieram de Boa Vista, em Roraima, depois de deixarem seu país de origem em virtude da crise econômica e política que está instalada há anos. A vinda para Venâncio Aires foi a saída que eles encontraram na tentativa de recomeçarem suas vidas. A partir de entrevistas feitas em Boa Vista, a maioria dos adultos foi selecionada e veio à Capital do Chimarrão com emprego garantido, em uma indústria do setor fumageiro. Um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) os trouxe até a Base Aérea de Canoas, onde um ônibus esperava para a viagem até Venâncio Aires.

“Somos muito agradecidos ao tratamento que o Exército nos deu. Nada foi feito às escondidas. Até foto tiramos na Base Aérea de Canoas com a turma da Operação Acolhida, que está encaminhando os venezuelanos para diversas cidades do Brasil”, disse Alisabel Alvarez, de 40 anos, em entrevista à Folha do Mate, que esteve no local na segunda-feira, 13, à tardinha. Desde quinta-feira, 9, quando chegaram ao município, os venezuelanos ganharam espaço na imprensa, mas pela primeira vez eles receberam uma equipe de reportagem para falar sobre como o destino os fez parar a Venâncio Aires. De cara, fizeram questão de agradecer pelo apoio que têm recebido da comunidade, que tem doado roupas, alimentos, material de higiene pessoal e brinquedos, uma vez que várias crianças estão entre os venezuelanos.

Emprego e dignidade são as palavras mais ouvidas no local onde os refugiados estão residindo. Eles querem oportunidades de emprego – os que ainda não têm – para retomar sua trajetórias. Muitos têm o sonho de trazer para cá suas mulheres e filhos, que ficaram na Venezuela. “Minha esposa e outros dois filhos, uma menina de 16 e um menino de 14 anos, estão à nossa espera. Não havia alternativa, a gente precisava agarrar esta oportunidade. Eu não sei se eles têm o que comer hoje, por isso quero eles por perto o quanto antes”, relatou José Fernando Leonett, de 44 anos, que junto com o filho de 19, José Leonett, está em Venâncio. Formado no Ensino Médio e demonstrando conhecimento sobre o cenário atual da Venezuela, o jovem está otimista em relação ao futuro: “Não vamos mais voltar à situação de carência extrema, inflação descontrolada e violação dos direitos humanos, pois o Brasil nos acolheu”.

CRÍTICA AO GOVERNO

De acordo com José Leonett, educação, saúde e segurança estão completamente desmantelados na Venezuela, fruto do governo ditatorial do presidente Nicolás Maduro. “Não há a independência dos poderes e quem não concordar com o que diz o governo, sofre as consequências”, afirmou. Para ele, o país, por sua riqueza em recursos renováveis e detentor das maiores reservas de petróleo em todo o mundo, jamais poderia ter se afundado na crise em que se encontra neste momento. “Um governo que se declara de todos não oferece as mínimas condições ao seu povo. A má administração impera, bem como a falta de distribuição de recursos. Por tudo isso, não restou opção a não ser buscar nova vida em outro lugar”, declarou.

Alguns integrantes do grupo receberam a reportagem da Folha do Mate na segunda-feira, 13. Uruguaio Fernando Salvia (de vermelho), morador de Venâncio Aires, colaborou para o entendimento das declarações (Foto: Alvaro Pegoraro/Folha do Mate)

“O governo, que quer ser visto como incentivador da educação, não mede as palavras para dizer grosserias ao seu povo. Além disso, permite que o petróleo fique completamente nas mãos dos militares. A Venezuela precisa de ajuda internacional, pois é necessário investigar profundamente os detentores de cargos públicos.”

JOSÉ LEONETT – Refugiado de 19 anos


O número de venezuelanos que chegaram a Venâncio Aires é 60 – 40 são adultos e há ainda 20 crianças, todos ocupando alojamentos em uma estrutura às margens da RSC-453, em Linha Travessa.

“Há perseguidos políticos entre nós”

Conforme Guillermo Rondón, de 50 anos, “não se pode pensar diferente do governo na Venezuela”. Se alguém quiser manter sua convicção de que o rumo que está sendo dado ao país é equivocado, o jeito é deixar as origens, como ele fez. “Há perseguidos políticos entre nós, e eu sou um exemplo”, ressaltou, acrescentando que “não se pode reclamar de nada, sob pena de ter a Polícia Política em cerco à sua casa”. De acordo com ele, desde que a Venezuela passou a sofrer com a crise, mais de seis milhões de cidadãos já imigraram e outros 20 milhões, segundo suas estimativas, “passam por situação extremamente delicadas”. “Há quem esteja morrendo de fome, passando muito trabalho”, lamentou.

Rondón esclareceu que deixou seu país rumo a Boa Vista, e depois a Venâncio Aires, “em busca de um pouco de Medicina (atendimento de saúde), comida e trabalho”. Ele comentou que a situação na capital de Roraima, embora já tenha sido minimizada, “ainda apresenta pessoas disputando árvores para dormir, como forma de abrigo”. “Estamos lutando para salvar as nossas vidas. Neste momento, tudo o que pedimos é oportunidade no mercado.

Todos nós podemos ter os nossos trabalhos e, com isso, garantir a dignidade das nossas famílias”, salientou. Ele afirmou ter conhecimento de que não é fácil a colocação no mercado de trabalho mesmo para os brasileiros, contudo pediu que não sejam vistos como pessoas que vão tirar o emprego de quem é da cidade. “Há profissionais experientes e com várias formações entre nós, como engenheiros, mecânicos e professores. Somos seres humanos em busca de sobrevivência”, disse.

ALUGUEL

  • Professora de Língua Inglesa, Neumari Nuñez, de 43 anos, tomou à frente do grupo e solicitou a palavra para comentar a respeito de uma situação que preocupa os venezuelanos. Segundo ela, pelo que foi repassado, a estadia no local onde estão seria gratuita por uma semana, mas depois disso, o aluguel passaria a ser cobrado, no valor de R$ 7,5 mil por mês. “É muito alto para que começou a trabalhar agora”, afirmou.
  • Os demais participantes da roda de conversa que se formou na segunda-feira concordaram com a opinião. De acordo com a estimativa deles, com 20 pessoas trabalhando e recebendo entre R$ 900 e R$ 1,2 mil mensais, dependendo da função que exercem, algo em torno de R$ 20 mil é obtido ao se considerar o grupo como um todo. Descontando o valor do aluguel, cerca de R$ 12,5 mil seria o que eles teriam para o sustento das famílias.
  • No momento, o grupo vive o lema ‘o que é de um é de todos’ e, dessa forma, pouco ou quase nada restaria após o custeio das necessidades dos 60 venezuelanos. Isso também deve atrasar, conforme a professora, o processo de independência das famílias, que é consenso de que deve ocorrer entre os refugiados. “Recebemos todo o tipo de ajuda da sociedade e agradecemos muito por isso. Estamos em instalações muito boas, inclusive com um espaço maravilhoso para que as crianças brinquem à vontade. Mas o aluguel nos preocupa e, se alguém quiser ajudar, pelo menos nos primeiros meses, é bem-vindo. Não queremos dinheiro, não precisam entregar nas nossas mãos, mas a ajuda seria bem importante”, informou.
  • O aluguel é intermediado por Felipe Vianna Duarte, que mantinha no local a organização A Base, que durante algum tempo promoveu em Venâncio Aires ações de evangelização a partir de retiros e outras atividades. Duarte explicou que foi contatado por um capitão do Exército que faz parte da Operação Acolhida, em Boa Vista, e se dispôs a receber os venezuelanos em Venâncio Aires. “Há um custo para manter a estrutura. O pedido foi para acolher na forma de cortesia pelos primeiros dias, até que começassem a trabalhar e pudessem caminhar com as suas próprias pernas”, informou ele, que não é o proprietário do lugar, apenas o subloca.
  • Duarte disse que, assim que foram publicadas as primeiras matérias a respeito da chegada do grupo à Capital Nacional do Chimarrão, a repercussão foi imediata, tanto de pessoas preocupadas com a situação dos venezuelanos, quanto opiniões contrárias à vinda dos refugiados. “Agora que saiu na notícia ninguém quer ser responsável, mas depois que eles estiverem bem e trabalhando, vão conseguir se manter sozinhos”, argumentou, acrescentando que também espera que a Prefeitura seja parceira no processo de adaptação.
Além de roupas, comida e materiais de higiene pessoal, comunidade venâncio-airense também fez doação de brinquedos para as 20 crianças que estão alojadas com suas famílias (Foto: Alvaro Pegoraro/Folha do Mate)

“A responsabilidade é do empresário e da ONG”

Secretário de Habitação e Desenvolvimento Social, Arnildo Camara declarou ontem que a posição da Prefeitura é a mesma desde que os venezuelanos chegaram. “Não fomos informados de que eles viriam para Venâncio Aires. Não recebemos qualquer contato e, por isso, não estávamos preparados para a situação. A responsabilidade é do empresário que foi buscar o grupo e da ONG, que colocou eles naquele local”, disse.

Apesar disso, Camara garantiu que o Município está “monitorando a situação” e já atendeu alguns dos refugiados na secretaria. “Inclusive, no dia em que estiveram aqui, foram largados na frente da secretaria e o cidadão que deu carona se mandou embora”, comentou. O titular da pasta esclareceu que participou de encontro com o Corpo de Bombeiros, Felipe Vianna Duarte e dois venezuelanos, para informar que a estrutura onde o grupo está precisará passar por adequações. “Acessibilidade e extintores não tem”, exemplificou o secretário.

De acordo com ele, “apesar de não ter sido comunicada, a Administração está atenta e preocupada, pois as crianças vão precisar de creche e as famílias de emprego, moradia e atendimento de saúde”. “Somos todos seres humanos e vamos tratar os venezuelanos com todo o respeito e carinho, dando o suporte que estiver ao nosso alcance. Porém, volto a dizer que a responsabilidade é de quem os trouxe até aqui”, concluiu.

Por enquanto, o grupo se divide pelos cômodos da estrutura que era da A Base, em Linha Travessa, e faz tudo junto, desde atividades até refeições, mas a intenção é de que cada família possa, em breve, ter a sua independência (Foto: Alvaro Pegoraro/Folha do Mate)

O empresário que esteve em Boa Vista e intermediou a vinda dos venezuelanos para Venâncio Aires é Canísio Konzen, da Special Brazilian Tabacos. Ontem, a reportagem da Folha do Mate fez contato com a empresa, mas ele não estava. À atendente, foi feito pedido de que a ligação fosse retornada, mas até o fechamento desta edição, por volta das 20h30min, o contato não havia sido feito.

OPERAÇÃO ACOLHIDA 

• A Operação Acolhida foi desencadeada em parceria entre o Exército e Governo Federal para dar apoio aos refugiados venezuelanos. Na tarde de ontem, a reportagem da Folha do Mate conseguiu contato com Eduardo Mendes, capitão do Exército que auxilia nas ações em Boa Vista, capital de Roraima. Ele confirmou que o empresário Canísio Konzen esteve na cidade para entrevistar os venezuelanos e foi quem escolheu os que teriam emprego na indústria. “Ele tinha uma experiência positiva com duas famílias venezuelanas e contribuiu com o acolhimento deste novo grupo”, disse o oficial.

• Mendes informou que todos os refugiados que entram no Brasil por Boa Vista recebem CPF, carteira de imigrante e têm as vacinas colocadas em dia, para evitar problemas na hora se conseguir trabalho e também coibir a “importação de doenças”. “Este grupo que está em Venâncio Aires teve sinalização de trabalho e, por isso, encaminhamos a viagem deles. Fomos responsáveis por todo o planejamento”, esclareceu.

• O militar também confirmou que fez contato com Felipe Vianna Duarte, a quem se refere como Pastor Felipe. “Ele me foi indicado por alguns contatos que temos em Porto Alegre”, comentou. A partir do sinal positivo de Duarte, que garantiu que tinha local para abrigar os venezuelanos nestes primeiros dias, a operação foi confirmada.

• O capitão declarou também que, ainda em dezembro, fez contato com a Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Social para falar a respeito da situação, “mas não houve sequer boa vontade das pessoas com as quais falei em me ouvir, muito menos em receber o grupo”. Por isso, o oficial foi em busca de uma instituição religiosa, o que o levou a Felipe Duarte Duarte.

CURIOSIDADES 

• De acordo com informações colhidas pela reportagem da Folha do Mate junto aos venezuelanos, o salário mínimo no país comandado por Nicolás Maduro, atualmente, é de 450 mil soberanos, algo em torno de R$ 30. “Não dá para comprar três bandejas de ovos, com 30 unidades cada”, explicou Orlando Rafael Reyes, de 46 anos, que também está com o grupo em Linha Travessa.

• Reyes lembrou que não há regularidade dos preços dos produtos na Venezuela. “A gente compra um quilo de farinha de trigo por um valor, hoje, e amanhã pode estar quatro, cinco vezes mais cara. O país vive um flagelo, com inflação sempre em disparada e escalada da delinquência”, referiu.

• Também integrante do grupo, Davi Bilera, de 50 anos, pediu para deixar um recado: “Temos fé em Deus, na sociedade brasileira e no governo deste país, que nos recebeu no momento em que a nossa pátria vive uma crise sem precedentes, jamais registrada em sua história. Não vamos morar na rua nem pedir esmolas, queremos trabalhar para ter nossas famílias novamente reunidas”, concluiu.

O uruguaio Fernando Riveiro Salvia, que há anos reside em Venâncio Aires e já tinha visitado os venezuelanos, acompanhou a reportagem da Folha na visita ao grupo, na segunda-feira, 13. Ele se dispôs a ir junto por ter fluência em espanhol, para ajudar no entendimento das declarações das fontes. “Me vejo muito neles, pois também passei por dificuldades até conseguir me estabilizar”, comentou.

Da Califórnia para Venâncio Aires

Há pouco mais de dois anos, o venezuelano Avimael Villarroel, hoje com 34 anos, estava em San José, terceira cidade mais populosa do estado americano da Califórnia – fica atrás apenas de Los Angeles e San Diego – e décima em população nos Estados Unidos. Estava trabalhando e planejava viabilizar a ida da família para junto de si. Na época, havia deixado na Venezuela a esposa e a filha, de apenas três meses de vida. Tudo ia bem, até que o seu país de origem entrou em conflito com os Estados Unidos.

“As coisas começaram a piorar quando faltavam cinco meses para expirar o prazo do meu visto. Aí já passei a me preparar para as dificuldades, e foi o que aconteceu. Quando tentei renovar o visto, não foi permitido e tive que sair de San José”, relatou. Agora, a sua aposta é em Venâncio Aires. A família, mais uma vez, está distante, mas ele não perde as esperanças de, um dia, poder levar uma vida normal. “Depois de tudo o que já passei, vejo este momento como propício para uma virada. O povo do Brasil tem sido sensacional com a gente e nunca vamos esquecer, principalmente quando conseguirmos estar ao lado das pessoas que mais amamos na vida”, afirmou.



Carlos Dickow

Carlos Dickow

Jornalista, atua na redação integrada da Folha do Mate e Terra FM.

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