As histórias que foram perdidas no incêndio do Salão Keller

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“Vamos para casa, está escurecendo.” O pedido tem sido feito nos últimos dias, de forma natural e quase automática, por uma senhora de 93 anos, criada naquele costume de interior em que o entardecer sugere a volta para o lar.

A idosa também pede pela sua cama, seus chinelos e sua xícara. Mas nada disso existe mais. Com exceção do carro (que estava na rua) e a roupa do corpo, tudo, absolutamente tudo que pertencia à nonagenária Erminda Keller, o filho Darci e a nora Elaine, foi destruído num incêndio no fim da última semana. Além da casa, veio abaixo o Salão Keller, local de tantos eventos e que era um dos pontos de referência do interior de Venâncio Aires por mais de 50 anos.

Foi na ponta de Linha Silva Tavares (a 40 quilômetros do centro da cidade), bem no meio das localidades de Leonor e Saraiva, que um pedaço da história da região serrana e da família Keller virou apenas escombros.

“A ficha não caiu”

Darci Keller, 63 anos, levantou assustado na madrugada de sexta-feira, 9. Eram cerca de 4h, quando a vizinha e amiga Olivia Wessling, 78 anos, lhe chamou. Olivia dormiu nos Keller, como já tinha feito outras vezes, para cuidar e fazer companhia à Erminda, e foi a primeira a notar que algo estava errado. “Tá dando uns estalos”, ela disse, chamando por Darci.

O motorista de ônibus aposentado, então, pegou uma lanterna de emergência que estava ao lado da cama e foi até a porta da cozinha, que dava acesso ao salão. “Entrei, mas não vi fogo. Quis desligar a chave da luz, mas não deu tempo. Em segundos a fumaça veio e não enxerguei mais nada. Nem extintor não deu tempo de pegar, porque era tanta fumaça que me perdi. Comecei a bater na parede e nisso a esposa abriu a porta e caí na cozinha”, relatou Darci.

Do lado de fora, a vizinha, Elisângela Funck, 41 anos, gritava, desesperada. Ela também acordou com um barulho e de casa viu as chamas. Tentou correr pela estrada, mas um cabo de luz soltou e ficou ricocheteando com faíscas sobre a via. Às cegas, ela subiu o morro em frente ao salão, onde ficam o antigo prédio da escola Presidente Vargas e da igreja Sagrado Coração de Jesus. Na escadaria do templo, Elisângela tropeçou, caiu e machucou bastante as pernas, mas seguiu mesmo assim, até conseguir contornar e descer o terreno irregular, à frente da casa dos Keller. “Nisso a porta abriu e vinham praticamente arrastando a vó [Erminda]. Graças a Deus conseguiram sair, mas não tinha como fazer nada. O vento era muito forte e trouxe o fogo para o lado do salão”, relatou.

Algumas galinhas, o papagaio e o periquito morreram, mas cães e gatos se salvaram e reapareceram dois dias depois, para alívio de Darci (Foto: Roni Müller/Folha do Mate)

O filho de Elisângela, Henrique, 17 anos, foi um dos que ajudaram e conseguiu soltar algumas galinhas e o porco, que estavam num galpão atrás do salão. Outros vizinhos vieram em socorro, mas as chamas avançaram rápido, potencializadas pelo forte vento daquela madrugada, e pouco se pode fazer. Tudo foi destruído em cerca de 30 minutos e o Corpo de Bombeiros, devido à distância, ao difícil acesso das estradas e ao caminhão pesado, levou muito mais tempo que isso.

“A ficha ainda não caiu”, resumiu Darci Keller, que não esconde o choque, toda vez que revê o local onde sobraram apenas escombros, cinzas e um cheiro de queimado que vai longe.

Do alto, é possível ver como ficou (Foto: Roni Müller/Folha do Mate)

Prejuízos

O Salão Keller tinha aproximadamente 450 metros quadrados. Ao lado direito dele havia uma casa de madeira, desabitada, mas que foi residência dos Keller por muitos anos. É nela que as chamas começaram, após um curto circuito na fiação antiga da casa, conforme suspeita da família.

Restos de um dos sete freezers que queimaram (Foto: Roni Müller/Folha do Mate)

No lado esquerdo, colado ao salão, estava a casa onde moravam Darci, Elaine e Erminda, além de um armazém. O fogo consumiu fogões, quatro geladeiras, sete freezers, dois geradores e 12 placas solares (instaladas há dois meses e quitadas à vista – R$ 20,8 mil).

Demais utensílios do salão, como centenas de copos, pratos, talheres, cadeiras e mesas (que comportavam 140 pessoas para os almoços das quermesses) foram destruídos. Chaleiras, xícaras e panelas também se perderam e os restos ainda estão em meio às cinzas.

Todos os móveis, eletrodomésticos, roupas, documentos e dinheiro viraram pó. A família conseguiu sair apenas com a roupa do corpo, descalços. O carro ‘escapou’ porque naquela noite ficou na rua, após o casal descarregar os prêmios para a reunião da sociedade de damas, encontro esse que aconteceria no domingo, 11, no salão.

O prato de servir maionese nas quermesses (Foto: Roni Müller/Folha do Mate)

Felizmente, as quatro pessoas que estavam na casa no momento do incêndio saíram sem maiores danos físicos. O problema foi a fumaça inalada por Darci e Elaine. Muito afetados, foram levados ao Hospital Monte Alverne, no distrito de Santa Cruz do Sul, a cerca de 20 quilômetros do local – metade do trajeto que seria para chegar até o Hospital São Sebastião Mártir, no centro de Venâncio.

“É muito triste ver tudo queimando e não poder fazer nada. Isso aqui não vai curar. Todos da localidade perderam alguma coisa com esse incêndio.”

ELISÂNGELA FUNCK – Agricultora, vizinha dos Keller

Das perdas que não podem ser medidas

Augusto Keller (1919-2006) e Erminda, que completou 93 anos em 21 de abril, casaram em 1945, ano em que a Segunda Guerra Mundial ainda estava em curso. Naturais de Linha Cachoeira Baixa, depois de casados foram morar na ‘ponta’ de Linha Silva Tavares, onde tiveram 10 filhos.

Considerado um líder comunitário, Augusto doou o terreno da primeira escola da comunidade (que ficava no lado debaixo da estrada) e também para a escola Presidente Vargas, no alto, ao lado da igreja. “O pai pensava que precisava ter um lugar para reuniões e encontros da escola e dos moradores. Aí decidiu construir o salão”, conta Darci, o caçula dos filhos.

Isso ocorreu no fim da década de 1960 e, desde então, o Salão Keller virou local para festas de casamento, batizados, 1º Comunhão, bailes e reuniões da sociedade. “Quantas festas, quantas alegrias e agora essa história se perdeu. São coisas de valor sentimental, que não têm preço”, considera Darci. Por ser da família, o local naturalmente celebrou os próprios eventos, como o casamento de quatro filhos de Augusto e Erminda e as Bodas de Ouro do casal, em 1995.

Em 2009, a família fez uma ampla reforma, trocando a fachada de madeira por alvenaria. Também foram reformados o telhado e o assoalho. Nos últimos anos, antes da pandemia, o salão era usado mais para festas particulares, velórios e as quermesses, essas anuais, no mês de junho.

Entidades

Além do valor sentimental, o incêndio no Salão Keller destruiu parte da história de entidades da localidade. Entre os itens, os livros de canções do coral Cantores Boa Amizade, as bandeiras da Sociedade de Damas Santa Helena e os troféus do antigo time de futebol Boa Amizade. De nada disso sobrou resquício. “É muito triste o que aconteceu, porque o salão era parte da história daqui e dentro dele tinham coisas guardadas, da comunidade”, lamenta Nelci Willms, 69 anos, que faz parte do coral e por mais de 30 anos integrou a diretoria da sociedade de damas.

Como era o salão. Fachada de alvenaria do salão foi construída em 2009, após uma ampla reforma. Foi na casa de madeira à direita, que estava desabitada, que as chamas começaram (Foto: Arquivo pessoal)

Reconstrução de um lar

Se dependesse dos filhos de Darci e Elaine, o casal e a avó ficariam mais próximos deles, em alguma casa no perímetro urbano. No entanto, as décadas morando naquele local e toda a história construída, foram determinantes para a permanência.

Assim, o próximo desafio é construir uma nova casa e uma nova história. Mas nesse futuro não terá armazém, nem salão de festas. “Sobre esses escombros eu vou ter meu jardim e minhas flores”, afirmou Elaine, 62 anos.

Enquanto isso, os três estão na casa da afilhada de Darci, Sandra, que mora próximo. A família também já solicitou à Prefeitura a possibilidade de uma cessão de uso do prédio desativado da antiga escola Presidente Vargas, para morar lá enquanto a nova residência é erguida.

Doações

• Desde o dia do incêndio, é grande a mobilização de familiares, amigos e vizinhos. Além de roupas e produtos de higiene e limpeza, já foram doados geladeira, freezer, camas, colchões, um roupeiro, um sofá e fogão a gás. Para doações em dinheiro, é possível ajudar via Pix. A chave é o CPF 29127360059, em nome de Darci Keller, na Sicredi.

A neta do ‘Keller August’

Não é exagero dizer que a história da família se mistura com a história da comunidade local, que integra moradores de Linha Silva Tavares e dos entornos de Leonor e Saraiva. Os Keller se estabeleceram lá há 77 anos e são uma espécie de referência, principalmente o patriarca, Augusto.

Isso pode ser medido pelo próprio tratamento dado a algumas pessoas. A professora Liviane Cristina Keller, 42 anos, filha de Darci, conta que, desde os tempos de aluna na Escola Sebastião Jubal Junqueira, em Vila Deodoro, era conhecida por ser a neta do ‘Keller August’ (na pronúncia alemã, geralmente o sobrenome vem primeiro).

Em abril de 2022, quando Erminda completou 93 anos, a neta Liviane fez esse registro no celular. Nos detalhes, a foto com Augusto Keller e com filhos, noras e genros (Foto: Arquivo pessoal)

“O vô sempre foi à frente do tempo dele e tinha essa preocupação com a localidade. Por isso deu os terrenos para as escolas e construiu o salão, para que a comunidade tivesse um local para ela.”

Desde o incêndio, Liviane tem procurado ser uma das ‘cabeças frias’ e ficar firme para resolver várias questões práticas para os pais e a avó, mas revelou que, internamente, o sofrimento é grande. “Eu fui chorar na sexta à noite, voltando para casa. É muita história e agora tudo se foi.”

Liviane também lamenta não ter feito com a própria família o que já ensinou aos alunos, já que é professora de História. “Eu já queria ter feito essa resgate antes, de objetos, de fotos e documentos, para preservar essa história. Mas infelizmente a gente sempre deixa para amanhã.”

“Existe uma ligação muito forte com o local, com a comunidade e principalmente com as pessoas. Meus pais e minha vó criaram raízes e elas permanecem na terra, não foram queimadas.”

LIVIANE CRISTINA KELLER – Professora, filha do Darci e neta da Erminda

Recomeçar

Muita coisa marcou esta repórter naquela curva de estrada da região serrana, num dos extremos dessa Venâncio tão extensa: o cenário em cinza e preto com restos carbonizados, o forte cheiro de queimado e os animais que se salvaram do incêndio rondando incessantemente o local, à procura do lar que não existe mais.

Mas marcante também foi ouvir os relatos sobre as histórias perdidas com o fogo e o quanto isso impactou na vida de uma senhora que se aproxima de um século de vida. Erminda, que ficava pedindo seus chinelos, sua xícara e sua cama, também disse, de forma lúcida e em alemão (língua que falou a vida toda): “Não acredito. Chegar nessa idade e ainda passar por isso.” E ela tem uma preocupação: “Onde vai ser meu velório?”, questionamento mais do que natural, afinal, em todos esses anos, o Salão Keller reuniu muitas pessoas, seja nos momentos alegres, seja nos momentos tristes. Ele era a referência para os encontros, mas também para o adeus.

Quando me despedi, meu alemão frágil só conseguiu dizer um “pass auf dich” (aquele tradicional ‘te cuida’), que Erminda retribuiu com um “du auch” (você também). Sei que não serve de consolo a essa família que vai precisar reconstruir tudo, mas todos escaparam praticamente ilesos e é preciso comemorar a vida. E ela vai seguir, com ajuda de pessoas que já se mobilizaram e outras que virão.

Espero voltar lá, assim que a nova casa estiver pronta, para registrar o início de uma nova história, construída literalmente sobre as cinzas. Por isso, desejo saúde aos Keller, em especial à Erminda, que aos 93 anos também vai recomeçar. Os objetos se foram, mas as memórias não se apagam.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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