“Precisamos de cidades capazes de ressignificar os processos de dor”, afirma especialista em situações de desastres e emergência

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Com o tema ‘Ressignificando a vida em meio à crise’, a programação da campanha Setembro Amarelo deste ano encerrou no dia 13, e buscou refletir sobre as consequências e os traumas causados pelas enchentes na saúde mental de quem foi atingido direta ou indiretamente. Para intensificar o debate sobre essa temática, a quarta edição do seminário promovido pelo Comitê Municipal de Prevenção dos Suicídios, em parceria com a Prefeitura de Venâncio, recebeu esse direcionamento.

A atividade contou com as explanações do médico psiquiatra André Bendel, que falou sobre saúde emocional, e da psicóloga clínica e especialista em psicoterapia analítica, Melissa Haigert Couto, de Lajeado. A palestrante, consultora em Gestão de Risco e Apoio Psicossocial e especialista e pós-graduada em Psicologia das Emergências e Desastres e Apoio Psicossocial, com atuação em situações de emergência e desastres desde 2004, foi entrevistada com exclusividade pela reportagem da Folha do Mate.

Entre as experiências presentes no currículo da profissional, que atua como psicóloga socorrista pela Cruz Vermelha, estão atendimento durante a tragédia na Boate Kiss, em Santa Maria, em janeiro de 2013, e na queda do avião da Chapecoense, equipe de Santa Catarina, em dezembro de 2016. Ela também coordenou o trabalho do Apoio Psicossocial à Covid-19 nos 90 dias da crise em Lajeado, uma das cidades que tinha bandeira vermelha no estado.

Folha do Mate – Quais as principais consequências das enchentes na saúde mental das pessoas, tanto aquelas que foram diretamente atingidas pelas cheias, quanto indiretamente?

Melissa Couto – Acho que a primeira grande consequência é a retraumatização. Vivemos uma enchente em setembro de 2024. Em novembro do ano passado, tivemos outro pico de enchente e, em maio deste ano, vivemos a pior de todos os tempos. As pessoas não tiveram tempo hábil para elaborar os processos de perda de setembro e de novembro, elas ainda estavam vivendo esse ciclo de luto. Na literatura, dizemos que antes de um ano nem pensamos em falar sobre o processo de luto. Sempre começamos a falar sobre o processo de ressignificação dos traumas depois de fechar um ciclo, e esse ciclo não fechou, fomos expostos à situação traumática de novo, tanto as pessoas que perderam diretamente quanto as que perderam indiretamente porque, de certa forma, entendemos que todo mundo foi afetado. Já viemos de um complicador desde 2020, em razão da Covid-19, quando vivemos processos de dor, de perda e de luto. Então, as pessoas vêm retraumatizando nesses quatro anos. Estamos vivendo um momento complicado, além de saber que no Vale do Taquari temos um alto índice de suicídio. Esta também é uma grande preocupação. Começamos a pensar sobre como são esses adoecimentos por sofrimento. Quando se vive uma crise desse tamanho da que vivemos é muito traumático. O grande impacto na saúde mental é esse que estamos vendo: as pessoas inconsoláveis e desesperançosas. E existem vários agravantes de transtornos mentais que acontecem depois de situações traumáticas. O adoecimento é iminente em situações de pessoas que não têm mais para onde voltar, que não têm dinheiro para reconstruir, que não têm uma rede de apoio fortalecida, entre outras questões.

As enchentes afetaram praticamente todo o Rio Grande do Sul, ou seja, não foi uma situação pontual em um município ou em uma região. Tendo em vista essa grande abrangência, o impacto na saúde mental das pessoas é maior? Por quê?

O impacto é maior porque o território é maior. Foi um maior território atingido, com mais vítimas e mais destruição. O que vivemos agora foi uma catástrofe. Um desastre é quando o impacto é tão forte de destruição e de danos materiais, pessoais e emocionais que não temos capacidade de resposta com os próprios recursos, mas ainda podemos reconstruir. Uma catástrofe é quando tudo que acontece em um desastre também acontece, mas com um dano permanente e existem coisas que não podem ser reconstruídas, ressignificadas. Uma catástrofe é quando a gente eleva uma situação de desastre, que foi o que aconteceu aqui, em vários lugares do Grande do Sul. São situações em que não poderemos reconstruir mais, onde um bairro inteiro foi levado e é zona de risco, por exemplo. Quanto maior o dano, maior o trauma. Quanto mais pessoas atingidas, mais pessoas adoecidas e mais incapacidade de reconstruir. São mais pessoas afetadas, desalojadas, desabrigadas e que perderam tudo. O que vivemos, de fato, foi algo que nos meus 20 anos atendendo desastres no país inteiro nunca tinha visto nada desse tamanho. Foi muito impactante, sem sombra de dúvida.

Diante da situação de catástrofe climática vivenciada em maio, na qual além de vidas muitos bens materiais foram perdidos, como as pessoas afetadas podem ativar a capacidade de resiliência para seguir em frente?

Primeiro precisamos falar do antes. Por isso, falamos tanto de prevenção, preparação e a necessidade de mitigar, para que em momentos em que esses cenários de crise acontecem, tenhamos recursos humano e técnico para auxiliar. A primeira coisa é que essas pessoas recebam o amparo necessário, de uma forma integral, respeitosa e digna nos processos de acolhida e de apoio. O atendimento psicossocial, que é o que a gente faz em cenários de crise e é uma abordagem completamente diferente de qualquer outra que realizamos na psicologia, é justamente essa acolhida da dor, no momento mais difícil da vida da pessoa, onde nada mais parece ter sentido, onde se perde tudo e o que fica é o que se recebe, são os vínculos. Acolher a dor do outro é muito importante nesse momento, porque a segurança, a conexão e o amparo vão trazer, de certa forma, esperança de dias melhores depois de tudo isso e gratidão pela vida, mas, ainda assim, entendendo que é o pior momento da sua vida, que tudo se foi e que tudo se perdeu. Os ativadores de resiliência são aqueles que a gente conhece e que sempre indica a utilizarem para as pessoas que passam por situações difíceis: rede de apoio é muito importante – família, amigos e vizinhos – e estar junto com pessoas que amamos e confiamos nos fortalece. Valorizar essas relações, buscar amparo e se fortalecer na união e na reorganização da sua vida. Buscar, de certa forma, otimismo e esperança nas ações próprias, buscar seus recursos, sejam eles através de auxílios, de apoios, de incentivos, mas reconstruir e ressignificar. Procurar espaço dentro de si, e fora, para a retomada da vida e da rotina, tentar se ocupar, ajudar, se unir, se fortalecer e fazer com que grupos se associem. Falamos que os ativadores de resiliência estão, basicamente, no controle dos impulsos, no amparo de emoções e no relacionamento vincular empático. Precisamos de pessoas. Nesse momento, os ativadores de resiliência são os afetos e os vínculos, que vão fazer com que a gente se fortaleça para recomeçar.

“Cada um tem a sua dor, e cada um sabe o que perdeu e o valor que o que perdeu tinha. Mas é nesse mesmo lugar das memórias, das lembranças e dos afetos que buscamos recursos para ressignificar.”

MELISSA COUTO
Psicóloga

Grande parte das perdas materiais das pessoas envolvem memórias. Como ressignificar a própria história depois desses prejuízos sentimentais e encontrar motivação para reconstruir em meio ao luto?

Quando a gente fala de processos de luto, falamos de processos que são únicos e diferentes. Cada pessoa passa por isso da sua forma. Cada um de nós tem uma forma de sentir, de demonstrar e de ressignificar. As perdas são parecidas, às vezes são do mesmo lugar, mas cada um sabe quem perde e o que perde. Então não há um comparativo. O processo de luto é um processo dinâmico e oscila. Ele não tem início, meio e fim, mas vai de cada pessoa saber como vai ressignificar os seus processos. Cada um de nós tem recursos internos e externos distintos também. Hoje em dia, temos muito mais capacidade de guardar memórias, porque temos recursos tecnológicos, mas já atendi desastres nos quais as pessoas perderam todos os seus registros e as lembranças materiais e não tinham como buscar em outro lugar, porque não existia internet, nuvem ou arquivo, por exemplo. É um processo de luto e ele é muito difícil. Cada um sabe o que perde, e para cada um o que perde é a pior situação ou a pior coisa que poderia ter perdido. Por isso, dizemos que não se pode medir a dor. Cada um tem a sua, e cada um sabe o que perdeu e o valor que o que perdeu tinha. Mas é nesse mesmo lugar das memórias, das lembranças e dos afetos que buscamos recursos para ressignificar. Por isso, volto a dizer: o trabalho e o apoio psicossocial é primordial, porque as pessoas que recebem esse tipo de trabalho têm 50% menos de chance de adoecerem com seus processos de luto e das reações que são esperadas neste momento não se tornarem lutos complicados, lutos não reconhecidos, mas sim serem um processo que vai se viver durante o tempo que precisar. Entretanto, algumas pessoas não recebem esse tipo de amparo e nem têm rede de apoio fortalecida ou perderam as suas redes de apoio e, nesse caso, vamos ter complicadores. Por isso, precisamos muito pensar no antes e no depois, assim como pensamos no durante. O trabalho psicológico acontece nessas três etapas e precisamos entender a importância dele, porque algumas ações terminam no momento do impacto e outras permanecem. Estamos reconstruindo histórias e vidas e o trabalho psicológico é do início ao fim.

Diante de uma situação de tragédia, quais são as primeiras ações que devem ser adotadas pensando no cuidado com a saúde mental?

Quando falamos de uma resposta rápida em uma tragédia a primeira regra de ouro é salvar vidas em todos os sentidos. Precisamos tirar as pessoas do perigo, resgatá-las e atender às que estão machucadas. Imediatamente, depois dessas três primeiras situações, vem o acolhimento. O apoio psicossocial, os primeiros socorros psicológicos no momento da crise, acontecem durante todo o tempo, porque recebemos as famílias que estão procurando [pessoas próximas], as pessoas que foram resgatadas, os profissionais que vão atender, as pessoas que chegam para a informação. Esse serviço inicia imediatamente. No momento em que a crise se instala, começamos a trabalhar com as equipes, ativamos os voluntários e os profissionais para trabalharem conosco, montamos uma estratégia de ação e nos vinculamos à rede, para possibilitar que as redes já existentes – municipal e estadual – trabalhem unidas, pois são várias frentes de resposta. Para a resposta ser integral no cenário de desastre é preciso todas as forças, todos os braços e todos os serviços. O apoio psicossocial funciona integralmente no antes, no durante e no depois. A saúde mental está colocada em todos os ciclos do desastre, ou seja, nas cinco fases.

“Ninguém tem que sofrer sem ajuda. A gente costuma dizer que a dor é inevitável, mas o sofrimento pode ser acolhido e amenizado. Precisamos buscar apoio.”

MELISSA COUTO
Psicóloga

Desde o ano passado a população gaúcha enfrenta graves consequências em decorrência das catástrofes climáticas. O debate sobre como tornar os municípios mais resilientes a esses fenômenos têm sido constante desde então. Nesse sentido, quais as ações preventivas que precisam ser adotadas pelos entes públicos com foco em saúde mental?

Faz 20 anos que a gente vem tentando conscientizar. Não existem políticas públicas, ainda, que amparem e que deem conta desse lugar. Já tivemos um grande movimento, mas para se ter ideia, na primeira grande tragédia que eu atendi, o incêndio na Boate Kiss [em Santa Maria], foi a primeira vez no Brasil que a Força Tarefa SUS respondeu integralmente a um desastre pelo SCO [Sistema de Comando de Operações, utilizado pelo Corpo de Bombeiros], de uma forma que trabalhou em rede e que o apoio psicossocial estava dentro. Depois disso, vivemos várias tragédias e voltamos para aquele mesmo lugar, onde a saúde mental está buscando espaço para mostrar o quão importante ela é. Desde sempre precisamos fomentar e psicoeducar em treinamentos e capacitações. Precisamos de comunidades preparadas, de profissionais aptos para fazerem esse tipo de atendimento, que é específico, breve e focal na crise, com dois objetivos: alívio do sofrimento e redução de danos. Precisamos entender e saber o que a gente faz. Muita gente tem boa vontade e compaixão, mas qualquer ajuda, não ajuda. Nós precisamos de profissionais qualificados e capacitados, porque senão a gente pode gerar um dano maior a essa pessoa. Em vez de receber o amparo e o apoio que precisa, ela pode adoecer de um trauma que ela poderia não adoecer. Nós precisamos de políticas públicas que amparem esse cuidado e esses profissionais capacitados, de redes que funcionem no coletivo e que sejam multi e interdisciplinares, para que as pessoas possam entender que o apoio psicossocial é da equipe de saúde mental, não é poder do psicólogo ou do psiquiatra. Todo profissional pode realizá-lo desde que esteja capacitado e qualificado para isso. Precisamos de cidades que sejam capazes de ressignificar os seus processos de dor e que possam ter forças para reconstruir, mas sem conhecimento, capacitação e treinamento, não vamos conseguir fazer isso. A gente só vai dizer que faz.

Quais são os sinais que precisamos ficar atentos para entender que é o momento de procurar ajuda e suporte emocional?

Pela literatura, conceituamos que já saímos do momento agudo da crise, que são os primeiros 90 dias. Então, podemos avaliar, nas pessoas que estão por perto, as mudanças de comportamentos e de reações. Nesses primeiros três meses falamos que ainda estávamos em um momento de entorpecimento e de choque, no qual as pessoas estavam reagindo ao trauma e à dor das perdas. Para investigar ou avaliar os sinais que estão acontecendo, primeiro é preciso observar tudo que é demais e tudo que é de menos. Comportamentos que são muito exagerados e que as pessoas estão fazendo com muita frequência e intensidade, ou comportamentos muito negligenciados, que não estão mais sendo feitos de jeito nenhum. Dentro desses cenários, as reações mais comuns e que podem servir de alerta são os transtornos relacionados ao sono e à alimentação, que são bem comuns, como insônia ou hipersonia, comer demais ou não querer se alimentar, comportamentos de isolamento, irritabilidade, falta de paciência, confusão mental, desatenção, desorganização, descrença e isolamento. Os comportamentos extremados e, principalmente, aqueles que não são comuns da pessoa. Cada um de nós tem um perfil cognitivo, emocional e psicológico. Dentro desse perfil, cada um tem as reações que estarão relacionadas aos nossos perfis. Tudo aquilo que percebemos que é a defesa do outro e que está aumentada ou exagerada precisa de atenção. Quando as pessoas estão se colocando em risco, tendo comportamentos perigosos, ou colocando outras pessoas em risco, também são questões que precisamos estar atentos. Quando vemos a presença dessas atitudes, é importante que se evite deixar a pessoa sozinha, auxilie na construção de uma rede de apoio que esteja presente e seja permanente e busque ajuda. Existe toda uma rede de saúde e de assistência que está disponível para dar amparo. Ninguém tem que sofrer sem ajuda. A gente costuma dizer que a dor é inevitável, mas o sofrimento pode ser acolhido e amenizado. Precisamos buscar apoio.

Como ajudar quem está em sofrimento mental?

Se fazer presente é a primeira coisa. Fortalecer os vínculos, ser afetivo, dizer que a pessoa é importante, demonstrar carinho, se preocupar e ter interesse nas coisas da pessoa. Convidá-la para fazer atividades que ela gosta e tentar achar outras opções, como atividades físicas, arte de forma geral, como música, leitura e cinema, buscar distraí-la e auxiliá-la a voltar para uma rotina saudável, que traga de volta pertencimento ao lugar que era ocupado antes. Ainda é relevante incentivá-la a retomar a vida aos poucos, dar oportunidade da pessoa falar como ela está se sentindo, abrir espaço para a escuta, perguntar se ela precisa de ajuda, dizer que está disponível, se demonstrar preocupado e receptivo, para que se possa auxiliar em meio à desorganização que ela está vivendo. Quando passamos por uma situação traumática é muito desorganizador. As pessoas, às vezes, têm dificuldade de se reconectar com quem eram. É importante que se auxilie nesse processo, estenda a mão e se faça presente. Sempre digo que estar lá para a pessoa e pela pessoa é a maior demonstração e o maior apoio que podemos fazer, além de buscar ajuda. Quando passamos por processos traumáticos e de luto eles sempre serão difíceis. A dor é do tamanho do amor que sentimos. Então, quando perdemos algo que a gente ama ou alguém que amamos, vai ser dolorido. Precisamos entender que vai ser menos difícil se recebermos apoio, se tivermos alguém para nos auxiliar, nos amparar, nos dar atenção e para nos levar até um caminho para buscar auxílio. A rede está aí para todo mundo buscar ajuda e ter atenção. Não precisamos sofrer sozinhos. Existem pessoas qualificadas e capacitadas para ajudar as pessoas que estão em sofrimento. Não fique só, você não está só.



Taís Fortes

Taís Fortes

Repórter da Folha do Mate responsável pela microrregião (Mato Leitão, Passo do Sobrado e Vale Verde) e integrante da bancada do programa jornalístico Terra em Uma Hora, da Terra FM

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