Desde janeiro de 2024, a vacina contra a Covid-19 integra o Programa Nacional de Imunizações (PNI) e, dessa forma, os regramentos para aplicação de vacinas mudaram. Estão nos grupos que devem ser vacinados com frequência as crianças, idosos, gestantes e outros públicos prioritários e especiais (veja no box). No entanto, desde as atualizações na administração das doses na forma de estratégia – assim como já ocorre contra a Influenza (gripe) –, resistências de pais e responsáveis têm surgido em relação à aplicação do imunizante em crianças.
Recentemente, em um caso analisado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi imposta multa aos pais que não vacinaram a filha, de 11 anos, contra a Covid-19, no Paraná. A decisão pode, a partir de agora, afetar outros pais que se recusarem a vacinar seus filhos com multa, prevista no artigo 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O tribunal leva em conta que a vacinação contra a doença foi recomendada em todo o país desde 2022 e incluída no Programa Nacional de Imunizações.
De acordo com o STJ, o entendimento firmado pela Terceira Turma confirmou a multa de três salários mínimos – a ser revertida ao Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – aplicada aos pais que se recusaram a vaciná-la contra a Covid durante a pandemia.
Orientação
A enfermeira coordenadora do Setor de Imunizações, Janete Fernandes de Souza, explica que a vacina contra o coronavírus é oferecida para os pais que acompanham os filhos na vacinação, assim como todas as demais doses contra outras doenças, e que fazem parte do PNI. “Como equipe, percebemos alguns receios e mitos sustentados pelos responsáveis. Quando falamos da vacina, se percebe um recuo e uma forma de defesa”, diz. Nestes casos, ela explica que uma observação é anotada no prontuário da criança. Entre os públicos, Janete destaca que os idosos são os mais abertos a receberem as doses conforme a indicação de administração.
Em caso de contraindicação comprovada, um atestado médico explicando as causas deve ser apresentado e o documento será anexado ao prontuário da criança. A vacina contra a Covid pode ser feita junto com outras vacinas, com exceção do imunizante contra a dengue, que por ainda ser recente, deve ser aplicado de forma isolada. As vacinas contra a Covid e gripe podem ser aplicadas de forma associada.
Janete explica que as vacinas que constam no PNI são obrigatórias e é papel do vacinador a orientação para que sejam aplicadas. Em situações mais graves, quando diversas vacinas de rotina ou as primeiras vacinas que uma criança deve receber não são feitas, os casos são encaminhados ao Conselho Tutelar. Se o caso seguir, a notificação vai para a Promotoria de Justiça. “São casos complexos, de negligência, quando os pais não procuram os serviços de saúde, ou as agentes comunitárias têm conhecimento e passam a demanda”, ressalta Janete.
Em Venâncio Aires, a vacinação contra a Covid em crianças é aplicada com o imunizante Pfizer, cujo frasco vem com 10 doses, ou a Moderna, com cinco doses cada. A quantidade de doses também faz com que a equipe tenha de ter um controle na abertura e aplicação das doses de cada frasco, para que não sejam desperdiçadas.
Comprovante
Atualmente, nos processos de matrículas e rematrículas das escolas, entre as documentações que devem ser apresentadas está um comprovante de situação vacinal. No entanto, segundo Janete, o trabalho em conjunto pode ser ainda maior, e se planeja ter uma parceria com a Secretaria Municipal de Educação nos próximos movimentos. Mesmo que a criança tenha vacinas faltando, o comprovante é entregue , com observações. “A declaração é importante para avaliar e orientar. Alguns acabam no momento fazendo a atualização da carteira, mas no caso de faltar vacinas, não barra a matrícula”, frisa.
- Pessoas do público geral, que ainda não receberam nenhuma dose da vacina contra a Covid, têm direito a uma dose.
Números da vacina contra Covid-19
- De acordo com dados do Centro de Imunizações, em Venâncio Aires, a cobertura vacinal contra a Covid-19 em crianças de 6 meses a 4 anos está em 16,58% (duas doses) e 4,21% (três doses), com o imunizante monovalente. No momento, a vacina contra a Covid-19 para as crianças está em falta, sem previsão de vinda de novas doses.
Públicos incluídos na vacinação contra a Covid-19
- Idosos e aqueles em instituições de longa permanência – a cada 6 meses.
- Crianças de 6 meses até menores de 5 anos – duas ou três doses, a depender do laboratório da vacina utilizada, sendo Pfizer Pediátrica (três doses, com intervalo de três semanas entre D1 e D2, e de oito semanas entre D2 e D3) ou Moderna (duas doses com intervalo de quatro semanas).
- Gestantes – uma aplicação a cada gestação.
- Puérperas – caso não tenha sido vacinada durante a gestação.
- Trabalhadores dos Correios – uma vez ao ano.
- Trabalhadores da saúde – uma vez ao ano.
- Imunocomprometidos, deficientes permanentes e com comorbidades – uma vez ao ano.
- Indígenas – uma vez ao ano.
- Pessoas privadas de liberdade – uma vez ao ano.
- Trabalhadores da segurança – uma vez ao ano.
ECA
1 O artigo 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) trata da infração administrativa que ocorre quando se descumprem os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrentes de tutela ou guarda, bem como determinações da autoridade judiciária ou do Conselho Tutelar. A pena prevista é uma multa de três a vinte salários de referência, que dobra em caso de reincidência e pode dobrar em caso de reincidência.
2 O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem considerado que a aplicação da multa não se restringe aos pais ou responsáveis, podendo ser aplicada a qualquer pessoa que desrespeite determinações da autoridade judiciária ou do Conselho Tutelar.
3 O Estatuto da Criança e do Adolescente, preceitua em seu artigo 14, §1º, a obrigatoriedade de vacinas para crianças quando recomendadas pelas autoridades sanitárias.
Hospitalizações por Covid-19
- De acordo com a Vigilância Epidemiológica de Venâncio Aires, neste ano foram oito casos com a necessidade de internação hospitalar em decorrência da Coivd-19, entre todas as idades e públicos.
- Foram quatro internações em janeiro, uma em fevereiro, duas em março, uma em abril e três em maio. Os números de casos sem internações (testes) não são mais contabilizados, já que os testes de Covid-19 só estão disponíveis para grupos prioritários específicos.
Testes rápidos de Covid-19
- Os testes rápidos de Covid-19 estão liberados nos postos de saúde apenas para grupos específicos como gestantes, puérperas, adultos com mais de 60 anos, pessoas institucionalizadas em lares de idosos e casas de acolhimento, crianças menores de 5 anos, população indígena e indivíduos com comorbidades. Para fazer o teste é preciso apresentar sintomas gripais e fazer parte de um dos grupos mencionados.
Inclusão do imunizante no calendário nacional
Membro do Comitê de Infectologia da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul (SPRS), Juarez Cunha destaca o motivo da inclusão da vacina contra a Covid para crianças. Ele cita que, em 2024, por exemplo, o Brasil registrou quase 3 mil hospitalizações de crianças com síndrome respiratória aguda grave causada pela Covid, além de 71 óbitos. Atualmente, o grupo mais afetado pela doença são os idosos, que apresentam maior índice de internações e óbitos, seguidos pelas crianças, que também têm uma taxa significativa de internação. “A orientação das sociedades científicas, incluindo a Sociedade Brasileira de Pediatria, a Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul e a Sociedade Brasileira de Imunizações, é clara: a recomendação é, sim, a vacinação contra a Covid para crianças.”
A inclusão da vacina contra a Covid no Calendário Nacional de Vacinação é uma mudança conceitual importante. Ele explica que antes as vacinas eram administradas por meio de campanhas, como o caso da vacina contra a gripe. “Essa abordagem gerava certa confusão, pois embora houvesse campanhas específicas, como a da vacina da gripe, ela não estava prevista nos calendários, nem mesmo no calendário de vacinação do idoso.” A inclusão no calendário, abrangendo grupos como crianças, gestantes e idosos, visa formalizar essa prática e deixar claro que a vacina faz parte da rotina de imunização nacional.
Confiança
Cunha, que é pediatra e representa a SPRS, avalia a imposição do STJ. Ele reforça que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina que, uma vez que as vacinas sejam recomendadas pelo Programa Nacional de Imunizações, devem ser aplicadas. “Embora não sejamos favoráveis à imposição ou obrigatoriedade, acreditamos que o melhor caminho é o diálogo. Precisamos conversar com as famílias, com os pais e até com nossos colegas pediatras para destacar a importância das vacinas. Por exemplo, os números que mencionei reforçam a relevância de vacinar as crianças contra a Covid-19. Essa é a abordagem que acreditamos ser a mais eficaz para lidar com esse tipo de decisão judicial. No entanto, é importante lembrar que a decisão judicial é uma competência do Judiciário, que toma essas decisões com base na legislação, e nós devemos seguir o que está previsto nela”, afirma.
Cunha acredita que o primeiro passo para garantir a vacinação nas crianças é perguntar aos pais se eles foram vacinados. Segundo o pediatra, o foco deve ser o convencimento, mas sempre abertos a ouvir as dúvidas das pessoas e, quando possível, contra-argumentar para ajudar a modificar uma decisão. “O grande desafio é que, devido à queda de confiança em relação à vacina contra a Covid, houve também um impacto negativo na cobertura das demais vacinas. No entanto, as vacinas continuam sendo fundamentais e são reconhecidas como a principal estratégia de promoção e prevenção da saúde.”
As sociedades científicas têm se dedicado a levar essa mensagem adiante. No entanto, segundo o especialista, um dos principais motivos para a queda nas coberturas vacinais está relacionado à complacência, à falsa sensação de segurança de que a doença não afeta a maioria das pessoas e que ninguém morre por ela. Portanto, uma das formas de conscientizar os pediatras é apresentar os números da Covid-19, que são a principal razão pela qual, no Brasil, decidiu-se incluir a vacina contra a doença como parte da rotina de vacinação de crianças de 6 meses a menores de 5 anos.
Como monitorar?
1 De acordo com Cunha, existem ferramentas que permitem avaliar as coberturas vacinais, o que proporciona uma boa visão sobre o panorama atual.
2 Uma prática essencial durante a consulta pediátrica é sempre revisar a caderneta de vacinação das crianças.
3 O que facilita bastante esse processo agora é a possibilidade de ter esses dados de forma eletrônica. Tanto a rede pública quanto a rede privada alimentam o sistema com informações sobre as vacinas aplicadas, o que garante que as cadernetas possam ser acessadas e avaliadas em qualquer local onde a pessoa seja vacinada.
“O brasileiro, de maneira geral, confia na vacinação. Temos 50 anos de Programa Nacional de Imunizações e, ao longo desse tempo, conseguimos impactar positivamente a expectativa de vida no país, aumentando-a em 30 anos graças ao uso das vacinas. Se não fossem as vacinas, como seria nossa vida hoje?”
JUAREZ CUNHA
Pediatra e membro do Comitê de Infectologia da SPRS

Obrigatoriedade está disposta em lei
Com os amparos da lei, todas as vacinas inclusas no Calendário Nacional de Vacinação têm a obrigação de serem feitas. Isso quem afirma é a advogada, doutoranda em Direito e professora universitária, Maini Dornelles. Segundo ela, o Supremo Tribunal Federal (STF), estabeleceu o Tema 1.103, no qual decidiu pela validade da obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que esteja registrada em órgão de vigilância sanitária e tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações ou ainda que tenha sua aplicação determinada em lei, sendo determinada pela União, Estados, Distrito Federal ou municípios, com base em consenso médico-científico.
Maini explica que considerando que é um dever dos pais garantir a proteção integral das crianças e que a falta de vacinação seja por esquecimento ou por uma negativa em vacinar os filhos é considerada uma forma de negligência, o STJ entende que a situação caracteriza-se como abuso de autoridade parental, tendo em vista que tal negativa viola o princípio de melhor interesse da criança. Resumidamente, os pais podem responder com pena de multa caso não vacinem os seus filhos.
A advogada esclarece que a Constituição Federal estabelece como norma, no artigo 227, que é um dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança, com absoluta prioridade o direito à vida e à saúde, entre outros. “Entende-se que todos têm a responsabilidade de verificar tais situações, sendo que é mais comum que seja identificada por profissionais de saúde ou em âmbito escolar.”
Quando identificada a situação de esquecimento ou negativa de vacinação, o Conselho Tutelar será acionado e pode notificar os pais para que regularizem a imunização da criança. Caso a situação persista, será dado continuidade a demanda com órgãos de proteção, sendo acionado o Ministério Público e o Poder Judiciário, sendo que este último pode determinar que os pais cumpram com o que está determinado na legislação e em caso de descumprimento aplicar a penalidade prevista.
Negligenciar uma temática de saúde pública, explica Maini, pode trazer de volta doenças que antes foram erradicadas, pondo em risco à vida da coletividade. “É um dever de todos garantir a proteção integral de crianças e adolescentes, ou seja, o monitoramento acerca da vacinação pode ser feito pelas autoridades estatais, escolas, sistema único de saúde por meio de seus agentes, especialmente aqueles mais próximos da comunidade, como os agentes de saúde, possibilitando também a orientação sobre o programa nacional de vacinação e as consequências geradas quando os pais ou responsáveis deixam garantir este direito a seus filhos e filhas.”
“A vacinação ao longo da história possibilitou a erradicação de diversas doenças e não pode ser negligenciada sob pena de pôr em risco à saúde da coletividade. Acredito que a medida venha a ser usada com frequência, especialmente porque está aplicando o que preceitua um dispositivo legal em prol dos Direitos da Criança e da coletividade.”
MAINI DORNELLES
Advogada, doutoranda em Direito e professora

Saúde da população
- Maini explica que a medida aplicada pelo STJ está dentro dos parâmetros legais, especialmente porque viver em sociedade implica na compreensão de que a vontade individual, não pode implicar em prejuízos para a coletividade.
- O Estado, em situações excepcionais, pode proteger as pessoas mesmo contra sua vontade, com o intuito de garantir a dignidade como um valor comunitário.
- Considerando que a vacina protege a sociedade no geral, escolhas individuais que afetam o direito de terceiros, como a negativa de vacinação, não são consideradas como legítimas. Esse é o entendimento do Poder Judiciário, ao analisar o Tema 1.103 no Supremo Tribunal Federal.
- A obrigatoriedade da vacina contra Covid-19 está preceituada em diversas legislações e foi declarada como constitucional pelo STF. Caso sejam desrespeitadas as normativas legais, será aplicada pena de multa e determinado pela autoridade judiciária que as crianças sejam vacinadas.
- A medida pode ser considerada eficaz. Além disso, a advogada reforça que é preciso desenvolver programas educativos sobre a importância da vacinação, explicando para a população em geral os riscos trazidos diante da falta de imunização.