Era agosto de 1991 e os corredores e gabinetes da Assembleia Legislativa viviam semanas agitadas. Além do tradicional movimento de parlamentares, assessores e imprensa, o Palácio Farroupilha vinha sendo frequentado por pessoas ‘comuns’, de diferentes localidades de municípios do interior. Entre elas, integrantes da comissão emancipacionista de Mato Leitão. O então presidente, Adolar Reiter, lembra que, desde dezembro de 1989, quando uma Seubv lotada aprovou o início da caminhada pela emancipação, houve resistência política. “Os Scherer não queriam”, afirma Reiter, se referindo aos irmãos Glauco (então prefeito de Venâncio Aires) e Gleno (então deputado estadual).
“O Glauco não ia abrir mão do barro vermelho, que era uma região das que mais garantia renda para Venâncio, e o Gleno nos dizia que não passaria na Assembleia. Em Porto Alegre, teve um trabalho pesado contra nós”, relata o presidente da comissão. Reiter conta que o plebiscito de Mato Leitão quase nem chegou à votação em plenário. Isso porque, ainda na Comissão de Constituição e Justiça da casa, dois deputados estavam se abstendo do voto. “Estava 5 a 4 contra nós e o presidente quase encerrando a votação. Daí eu a Eunice [Heuser] gritamos na nuca dos deputados ‘vota, por favor!’. Aí eles pediram para votar. Felizmente eram favoráveis e viramos.”
Mas esse ‘grito pelo voto’ estava longe de ser o momento mais tenso. Para a votação em plenário, centenas de moradores de Mato Leitão foram a Porto Alegre. “Foi uma pressão e todos falavam. Quase fomos retirados. Então penduramos placas nas costas, que diziam ‘sim’, e nos viramos.” Reiter relata que a votação estava prevista para o início da tarde e, por isso, o almoço nem ‘desceu’. “Antes de irmos para o plenário, vários contrários, inclusive o Gleno, vieram nos pressionar, que deveríamos firmar um contrato que, caso Santa Emília e Teresinha votassem ‘não’ no plebiscito, nós iríamos tirar elas do nosso mapa. Mas isso era uma politicagem, porque já estava previsto em lei.”
Nesse meio tempo, o pleito de Mato Leitão entrou em votação e acabou conquistando a maioria dos votos. Mesmo com a vitória garantida, o orgulho estava ferido e, por teimosia, a comissão fez o tal contrato. “A Eunice estava tão nervosa que só tremia, não conseguia ‘bater’ o texto. Então nosso tesoureiro, Décio Henckes, escreveu aquelas poucas linhas na máquina, as quais assinei depois.” Reiter diz ainda que Gleno Scherer foi pessoalmente à sede do então 4º Distrito de Venâncio para entregar a credencial do plebiscito, em reunião realizada dentro da Igreja Santa Inês. “Ele ainda tentou nos convencer a desistir. Mas, se a gente não tivesse conseguido, teríamos tentado de novo.” O ‘sim’ nas urnas em 10 de novembro foi dado por mais de 60% dos eleitores.
Orgulho
Ao analisar a evolução do município, Adolar Reiter se diz orgulhoso e destaca que Mato Leitão é o que se esperava na época. “Uma cidade com um futuro promissor, em crescimento, onde todos os gestores trabalharam muito para contribuir.”
Quem também fala de orgulho é Eunice Heuser, que integrou a comissão e foi a primeira prefeita da cidade, eleita em outubro de 1992. “Sei que fizemos o melhor. Uma equipe pequena que começou sem nada e, aos poucos, foi conquistando. O asfalto nas ruas centrais, a primeira unidade de saúde, transporte gratuito para alunos, melhorias nas comunidades. Tantas coisas para melhorar a qualidade de vida. E sempre havia a satisfação no olhar das pessoas pelo que estava acontecendo.”
“Não houve resistência”, afirma Gleno Scherer
“Jamais houve qualquer resistência. Até entreguei a credencial para o plebiscito pessoalmente à comissão, dentro da igreja. Deus é testemunha.” A afirmação é de Gleno Scherer, hoje com 88 anos. Em 1991, o então deputado estadual pelo PMDB era apontado pela comunidade de Mato Leitão como um dos que mais ‘resistiram’ à emancipação, ao lado do irmão Glauco (1938-2018), o prefeito de Venâncio Aires na virada da década de 80 para 90.
Sabendo desse desagrado por parte da comunidade mato-leitoense, Gleno deu sua versão e afirmou que nunca foi compreendido. “O que aconteceu é que Mato Leitão queria incorporar Santa Emília no seu mapa. Mas a Santa Emília não queria, o que acabou se confirmando na urna. Mas não fui ouvido e no dia da votação até me vaiaram dentro da Assembleia.”
Sobre a ‘resistência’ de Glauco, Gleno Scherer disse que o irmão fez o que lhe cabia ao cargo. “Quando um prefeito assume, ele jura defender os limites do seu município. O Glauco era a favor da emancipação, mas oficialmente ele não teve como externar isso. Depois do plebiscito, inclusive, ele não fez nada para tentar mudar. Não houve nenhuma ação da municipalidade para tentar impedir.”
540 dias ‘puxados’
“É aqui que vai ter reunião de emancipação?” Até hoje, Gilberto Weber (presidente da comissão de emancipação e primeiro prefeito de Passo do Sobrado) não sabe de onde João Benno Kronbauer tirou a ideia, num fim de tarde, em fevereiro de 1990. Kronbauer lançou a pergunta, que acabou virando semente nos meses seguintes.
O assunto, o antigo marceneiro já discutia com amigo, Ernani (pai de Gilberto) nos anos 1960, mas adormeceu com o início do regime militar. Décadas depois, outra geração retomou a empreitada. “Estando a 35 quilômetros de Rio Pardo, entendíamos que depender de lá não dava mais. Alguma coisa precisava ser feita”, recorda Weber. O empresário, hoje com 69 anos, lembra que a emancipação nem foi a primeira ideia. Houve uma tentativa de anexar o distrito a Venâncio Aires, já que muitas das raízes tinham origem na Capital do Chimarrão.
Assim, algumas pessoas participaram de uma reunião do Legislativo local, ainda no prédio principal da Prefeitura. “Mas a recepção não foi boa, porque alguns vereadores de oposição questionaram: se a Prefeitura não consegue atender nem as localidades de Venâncio, imagina mais uma? Então voltamos para casa e pensamos: quem somos nós? O que temos? Aí a ideia ganhou mais força.”
A partir dali foi tudo muito rápido e intenso. Em oito de maio de 1990, Weber nem lembra mais como foi eleito, mas se tornou o presidente da comissão emancipacionista. “Até o dia 10 de novembro de 1991, foram mais de 500 dias muito ‘puxados’. Reuniões semanais e efetivação de 17 subcomissões, para contemplar todas as comunidades. Tinha mais de 100 lideranças envolvidas.”
Bandeiras no Paroquial
Um dos movimentos mais marcantes nesse processo foi o envolvimento das escolas. Gilberto Weber lembra da proposta de um concurso para que as crianças desenhassem uma bandeira. “Foi muito lindo o que aconteceu. Centenas de desenhos expostos no Salão Paroquial. Aquilo teve um significado muito grande, porque era a gurizada sonhando com um município novo.” Além disso, foram confeccionadas ‘placas’ para os moradores colocarem nos carros.
Na Assembleia, Weber disse que não houve qualquer dificuldade com os deputados para aprovar o plebiscito em 1991 e teve apoio dos ‘próximos’. Sérgio Moraes (PTB), morador da vizinha Cerro Alegre, em Santa Cruz do Sul, e Gleno Scherer (PMDB). Gleno é filho de Alfredo, que é irmão de Clara Hilda (mãe de Gilberto e que faleceu aos 103 anos, em 2017).
Parceria
“Tenho certeza que vamos surpreender pela capacidade do nosso povo.” Essa frase Gilberto Weber disse a um repórter do Jornal de Rio Pardo, dias após o plebiscito que resultou em 2.304 ‘sins’ e 337 ‘nãos’. Trinta anos depois, ele acha que a previsão se confirmou. “Dá muito orgulho ver a evolução nos últimos anos e de que contribuímos de alguma forma.”
Weber foi eleito o primeiro prefeito da cidade e recorda dos desafios. A antiga capela, atrás da Igreja Nossa Senhora do Rosário, foi o primeiro gabinete e seguiu assim até 1996, quando foi concluído o prédio atual da Prefeitura. Tudo começou do ‘zero’ e, por isso, os gestores de outros municípios ‘recém-nascidos’ trabalharam juntos. “Eu e os prefeitos de Mato Leitão, Gramado Xavier, Vale do Sol e Sinimbu nos reuníamos e muitas compras fizemos juntos.”
Entre as suas maiores conquistas como prefeito, Weber destaca o asfaltamento da ERS-405, que liga a RSC-287 até Vale Verde. Iniciada em 1993 e concluída em 1997, a obra nunca foi inaugurada.
Sobre orgulho, o ex-prefeito fala da equipe formada no primeiro mandato. “Todos se ajudavam, foi um trabalho em equipe mesmo, num ambiente saudável e em sintonia.”
Lamento
Infelizmente, devido àquelas ironias da vida que não se explicam, uma pessoa importante no processo de emancipação de Passo do Sobrado não viu ela acontecer. Segundo Gilberto Weber, seu antigo vizinho, João Benno Kronbauer, um dos primeiros a falar sobre o assunto, faleceu dias antes do plebiscito. “Infelizmente o cara que ajudou a plantar aquela semente, não estava presente quando tudo aconteceu. Mas deve estar feliz por tudo que foi conquistado.”
Contexto
- Segundo o professor de História da Univates, Sérgio Nunes Lopes, os movimentos de emancipação decorrem de uma série de fatores relacionados entre si, com aspectos culturais, políticos e administrativos. Mas ele explica que cada espaço tem pautas bem específicas.
- “São as que mais mobilizam os cidadãos do lugar, pois em boa medida o engajamento se dá na esperança de que os serviços públicos melhorem. Há grupos que acreditam na emancipação como forma de encetar o desenvolvimento o que só se efetiva em contextos democráticos.”
- Historicamente, Lopes explica que a ideia de segmentação do território no que hoje é o Rio Grande do Sul é bem antiga e remonta ao ‘apagar das luzes’ do período colonial. Em 1809, o que corresponde ao estado, foi elevado à condição de capitania (Capitania Geral de São Pedro).
- Já quando estava no Brasil, também em 1809, Dom João VI assinou uma provisão criando as quatro primeiras vilas e as respectivas vilas freguesias e capelas filiais. “O estado que hoje tem quase 500 municípios tinha apenas quatro: Santo Antônio, Porto Alegre, Rio Grande e Rio Pardo.”
- Com o passar dos anos, novos municípios foram surgindo, como em 1831, quando Triunfo se emancipa de Porto Alegre, e em 1849, a freguesia de Taquari é elevada a município. E aqui entra Venâncio Aires, que na época era a Freguesia de São Sebastião e pertencia a Taquari. Quando Santo Amaro se emancipa de Taquari, ‘puxa’ o território de Venâncio para seu mapa. A história seguinte todo venâncio-airense conhece e começa em 11 de maio de 1891.
- Depois da Constituição de 1988, com a descentralização política que determinou a transferência da regulamentação das emancipações da União para os estados, houve uma grande onda de desmembramentos. Mas em 1996, no que parece ter sido uma reação ao ritmo emancipacionista, o Congresso Nacional promulgou uma emenda à constituição: a ‘famosa’ número 15.
- Ela deu um novo caráter centralizador à matéria, limitando a autonomia estadual. A esfera federal retomou a prerrogativa de regulamentar o período hábil para emancipações. Além disso, passou a exigir um ‘estudo de viabilidade’ do novo município e, o ponto mais restritivo, a estender o plebiscito ao eleitorado de todos os municípios envolvidos.
- O professor Sérgio Nunes Lopes destaca ainda que, no Rio Grande do Sul, no fim dos anos 1990, houve os últimos movimentos maiores por emancipação, muitas delas só adquiridas no anos 2000. Vale Verde, por exemplo, realizou seu plebiscito em 1995.