As histórias de um tesouro perdido em Monte Alegre

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Diz-se ao longo da história que muitas descobertas aconteceram por acaso. Basta lembrar da versão sobre a teoria da gravidade, que teria sido formulada pelo inglês Isaac Newton depois que uma maçã caiu sobre a cabeça dele, no século XVII.

Verdade ou não, é essa versão do acaso a mais propagada. Guardadas as proporções, a casualidade também pode ter sido o início de um resgate histórico aqui na região, mais precisamente em General Câmara, um lugar que também têm relação com Venâncio Aires (afinal, no próximo maio, serão 130 anos de emancipação das bandas rodeadas pelo Jacuí).

Foi naquelas mesmas terras que, há alguns meses, João Pereira Guahyba Neto tropeçou em uma pedra. Mas esse tropeço, que não tem nada de engano, fez ele começar a ‘juntar os pontos’ entre os relatos que ouviu dos parentes antigos e dos livros que leu. A partir de um ‘trupicão’, surgiu a ideia de tentar resgatar um ‘tesouro’ perdido e uma história que começou há mais de 250 anos.

Culpas do passado

“Não chateia, Nilza.” A resposta era sempre a mesma quando João Pereira Guahyba (1908-1981) evitava a provocação da mulher, Ady “Nilza” Gosch Guahyba (1915-1983). Por mais de 40 anos, tinha um assunto que ele pouco comentou e, quando falava, era com uma vergonha que não cabia em si. A vergonha de ter sido passado para trás, enganado praticamente ‘às claras’.

Era década de 1930 na Estância Guahyba (área hoje que fica entre a divisa de General Câmara e Vale Verde, na localidade de Monte Alegre), quando dois estranhos apareceram na fazenda de João com um pedido peculiar: queriam autorização para cavar e buscar um tesouro que, tinham certeza, estava enterrado lá. Cético, João deu risada e autorizou a empreitada. Mas Nilza, desconfiada que era, cobrava do marido que acompanhasse de perto o que os forasteiros faziam. “A vó incomodava ele para ir todo dia olhar. O vô contava que era um buraco tão fundo que os caras estavam pequenos dentro e acharam talheres de prata”, conta João Pereira Guahyba Neto, 62 anos.

Tempos depois, João foi à região metropolitana tratar de negócios e, a pedido dos ‘escavadores’, aproveitou para encontrar um homem. “O vô chegou numa casa simples e um senhor que ele nunca viu, disse: ‘Lulu, diga para eles que não é lá. É mais adiante’. Como esse homem sabia o apelido do meu vô? Ou ele era meio espírita, meio vidente ou tinha um mapa”, arrisca João Neto.

De volta à estância, deu o recado e os homens começaram a cavar em outro lugar. Certo dia, fazendo a ‘ronda’ a pedido da esposa, João encontrou apenas um buraco vazio e marcas no chão, de algo pesado que teria sido arrastado. A poucos metros dali, estava a lagoa da Charqueada, que tem ligação com o rio Jacuí.

A dupla teria fugido de barco, levando algo que encontraram e deixando para trás um João que se sentiu enganado e culpado por décadas. “A vó era brava com o vô por causa disso e ele tinha vergonha do que aconteceu, porque teria facilitado. Quando ela pedia pra contar, ele evitava.”

Tinha uma pedra (e um buraco) no meio do caminho

Um dos herdeiros da atual Fazenda Guahyba, João Pereira Guahyba Neto ouviu muito essa história vivida pelos avós paternos. Veterinário, João Neto também é um leitor assíduo e com um grande conhecimento histórico, capaz de narrar fatos e datas com precisão.

Se considera um autodidata e tem na memória histórias e nomes das famílias lusitanas que deram origem aos seus antepassados e dos cenários da região, de tempos em que o Rio Grande do Sul tinha outras fronteiras e vivia em meio a combates entre espanhóis, portugueses, índios e escravos.

Essa história do tal buraco e de um suposto tesouro perdido veio à tona novamente nas últimas semanas, quando João foi abrir uma picada no mato, marcando espaço para os diaristas fazerem uma nova estrada. “Tropecei numa pedra cupim e aí vi que era mesma pedra usada na casa (veja abaixo). Estranhei, porque ela não existe em outro lugar da fazenda.”

João Pereira Guahyba Neta mostra algumas das pedras cupim que encontrou (Foto: Roni Müller/Folha do Mate)

Impressões

Segundo o que João aprendeu, seja nos livros (como em ‘Muralhas Lusitanas no Baixo Jacuí’, de René Boeckel Velloso Filho), seja nos relatos dos mais velhos (como o tio Odilo Becker), é de que no século XVIII, quando o Rio Grande do Sul era dividido entre espanhóis e portugueses, padres jesuítas saiam carregando ouro, prata e outros ‘tesouros’.

“Isso caracteriza coisa de jesuíta. Eles abriam uma valeta rasa em formato de cruz e enchiam de pedra com uma fina camada de terra por cima. Com o tempo, a vegetação que crescia ali tinha uma tonalidade diferente.”

Ainda conforme João Neto, essa cruz desenhada era a indicação de onde enterravam objetos de valor. “Acredito que essas pedras que achei estejam relacionadas a isso, que demarcavam o lugar.”

Toco de madeira também pode ter sido enterrado para demarcar o local (Foto: Roni Müller/Folha do Mate)

Buraco

Depois de tropeçar na pedra, João achou um buraco imenso e que, aparentemente, não foi obra de erosão. A impressão, mesmo para quem ignora as ações da natureza, é de que o local foi escavado.

Com cerca de 10 metros de diâmetro e uns três de profundidade, o buraco tem as bordas altas, como se fossem consequência da terra jogada para fora. No entorno, por um traçado de 180 graus, há cerca de 15 pedras cupim, umas maiores, outras bem pequenas, que contornam o buraco.

No outro lado, há apenas um toco de madeira, de cerca de 1,5 metro. Poderia ser o resto de um moirão, mas não há marcas de pregos ou arame. É como se tivesse sido enterrado simplesmente para demarcar algo.

Na borda, uma ‘figueira branca’, espécie que pode chegar a 30 metros e, nascida dentro do buraco, uma ‘açoita-cavalo’, que pode medir 17 metros de altura. Segundo João Pereira Guahyba Neto, as árvores teriam mais de 80 anos, o que remete à década de 1930, quando teria acontecido o furto.

Pesquisa

João Neto não sabe se no buraco que encontrou tem algo enterrado e ainda está atrás do outro local onde os escavadores também procuram pelo tesouro. Na dúvida, mas apostando que naquelas terras possa ter alguma indicação histórica, ele buscará ajuda científica. “Minha ideia é falar com uma equipe de Arqueologia da UFRGS [Universidade Federal do Rio Grande do Sul], para ver se eles vêm aqui e digam qual o procedimento correto para preservar e resgatar a história disso. Devem achar alguma coisa que identifique e quem sabe inserir o local numa rota turística”, projeta.

Das gerações que formaram a região

A casa que João Pereira Guahyba Neto diz ter sido construída com as mesmas pedras que encontrou no mato foi erguida em 1754. A data surpreende porque, naquela região, é a igreja de Santo Amaro uma das referências mais antigas – a data diz que ela é de 1787, embora não se saiba se foi o ano de início ou término da construção.

Há 267 anos, a casa foi construída para ser a sede do então Rincão Guahyba, sesmaria pertencente a Lourenço Bicudo de Brito. O nome ‘Guahyba’ foi dado pelos índios e significa ‘grande quantidade de água’, devido ao número de sangas, arroios, lagoas e o próprio rio Jacuí.

O rincão foi para as mãos da família de João Neto em 1853, quando o capitão Joaquim Constantino Pereira dos Santos (seu tetravô) a comprou e produziu charque e farinha de mandioca. O capitão, inclusive, participou da Revolução Farroupilha (1835-1845) e da Guerra do Paraguai (1864-1870).

Casa construída em 1754 e que está na família Guahyba desde 1853 (Foto: Roni Müller/Folha do Mate)
De pé, João Pereira Guayba na juventude, com os pais e irmãos (Foto: Arquivo pessoal)

Sobrenome

Joaquim era pai de Antônio, que era pai de Agostinho. Este, o bisavô de João Neto, foi quem inseriu o nome Guahyba na família. Conforme João, o ancestral tinha um homônimo em Santo Amaro, o que causava muito confusão.

Sempre havia dúvida na região quando se falava em Agostinho Pereira dos Santos: ‘é do Santo Amaro ou do Guahyba?’, perguntavam. Para resolver o problema, o Agostinho que morava no Guahyba adotou o endereço como sobrenome. Era ele o pai de João Pereira Guahyba, o que teria sido enganado pelos ladrões do tesouro enterrado.

Atualidade

A casa ainda segue de pé e é habitada. Claro que já passou por inúmeras reformas, afinal, são quase três séculos, mas muito da sua estrutura original está lá, como as telhas de barro feitas pelos escravos e paredes grossas de pau-a-pique e taquara, preenchidas com barro. A proprietária é Lúbia Martins, 64 anos (irmã do senador Lasier Martins). Ela é viúva de Emir Guahyba (1932-2013), tio de João Pereira Guahyba Neto.

Outros nomes

Com uma história secular, há muitos outros nomes na região de General Câmara e Vale Verde que têm laços com a família Guahyba. Entre eles, Nero Pereira de Freitas. Ele era primo-irmão de João Pereira Guahyba e herdou parte das terras em Monte Alegre. Produtor de arroz, dono de uma cabanha de touros e forte liderança comunitária, também assumiu o Executivo de General Câmara. Décadas atrás, o atual balneário Monte Alegre era conhecido apenas como ‘Nero Freitas’. O nome dele também foi dado à escola de Ensino Fundamental de Monte Alegre.

Lenda ou realidade?

Segundo a historiadora e uma das organizadoras do livro ‘O patrimônio da fé: Santo Amaro do Sul’, Angelita da Rosa, parte das histórias relacionadas a supostos tesouros podem ser consideradas lendas, porque não há comprovação.

“Alguns documentos sim, falam que jesuítas estariam guardando tesouros. Mas se enterravam ao redor de uma igreja ou em outros locais quando havia alguma invasão a partir de brigas entre espanhóis e portugueses. Não é possível afirmar.”

Ainda, conforme Angelita, o que realmente está comprovado em relação aos jesuítas são as histórias sobre os ‘santos do pau oco’. Em Porto Alegre, por exemplo, onde há santuários jesuíticos, há vários exemplares. Como a madeira ‘trabalha’ com o frio e o calor, as estátuas eram esculpidas assim, para não rachar.

Mas com isso também se viu ali o esconderijo perfeito para mandar muito ouro para a Europa durante o período dos jesuítas no Brasil. “Grande parte aconteceu nas reduções na América espanhola e da qual o Rio Grande do Sul pertencia, até o Tratado de Madrid, em 1750, quando as missões foram entregues aos portugueses”, explica.

Venâncio

Toda essa história relatada até aqui também tem, em parte, relação com a origem de Venâncio Aires. A Capital Nacional do Chimarrão vai completar 130 anos no próximo 11 de maio e, até 1891, pertencia àquela mesma região banhada pelo rio Jacuí. Mas, ao contrário do que muito já foi propagado, está errado dizer que a emancipação aconteceu de General Câmara.

Segundo a historiadora Angelita da Rosa, no fim do século XIX, General Câmara era um distrito chamado Margem e que pertencia ao município de Santo Amaro. “O correto é dizer que Venâncio Aires se emancipou de Santo Amaro. O status só mudou na década de 1930, quando o presidente Getúlio Vargas cria o arsenal de guerra. A sede vira General Câmara e Santo Amaro vira distrito. ”

Tesouros achados

O colega Roni Müller me acompanhou nos quase 60 quilômetros entre Venâncio Aires e a fazenda Guahyba, em Monte Alegre. E essa aventura devo a outro colega, o jornalista Claudio Froemming, que sugeriu a pauta.

Embora buscamos apurar informações preliminares, o mais importante sempre acontece ‘in loco’, pessoalmente. Para mim, entusiasta da História, conhecer aquela fazenda e conversar com João Pereira Guahyba Neto foi literalmente uma viagem no tempo. Histórias de guerras que marcaram o Rio Grande do Sul por séculos, de imigrantes, de inúmeras gerações de famílias, de formações de vilas e municípios. Não seria exagero dizer que a trajetória dos Guahyba em Monte Alegre é quase como a saga dos Terra/Cambará, em ‘O tempo e o vento’, clássico de Erico Verissimo.

João Pereira Guahyba Neto, que gentilmente me deixou pisar naquelas terras históricas e me contou tanta coisa, confidenciou ainda que, quando achou o tal buraco e as pedras, sentiu algo diferente. “Me arrepiei e deu vontade de chorar. Uma emoção e um motivo de felicidade. Nem que eu viva 200 anos, achei que teria o privilégio de encontrar isso.”
Não sei se o João, um dia, saberá do paradeiro do tesouro que poderia ter sido da família. Mas, para mim, encontrar essa história foi como achar um ‘tesouro’. Saí de lá rica em conhecimento e com a oportunidade de dividi-lo nesta matéria. Isso não tem preço.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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