A história de Celso Piccinini, o gringo de Vila Santa Emília

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Conheça a trajetória do ‘gringo’ Celso Piccinini, um dos primeiros descendentes de italianos a morar na localidade de Venâncio Aires.

Esta semana marcou uma data emblemática para inúmeros gaúchos que carregam algum sobrenome do território que lembra uma bota no mapa da Europa – a Itália. Gaúchos ‘tutti buonna gente’ que, como muitos se definem em tom de brincadeira, falam com a boca e com as mãos. Foi no 20 de maio de 1875, portanto há 150 anos, que chegaram a Nova Milano, atual município de Farroupilha, os primeiros imigrantes italianos no Rio Grande do Sul.

O movimento ganhou corpo entre 1884 e 1894, quando 60 mil italianos desembarcaram no estado. E foi justamente na década de 1880, que membros da família Piccinini se instalaram no município de Estrela, na região que hoje pertence a Roca Sales. Foi naqueles morros, próximo de Garibaldi, que Joaquim (ou Gioaquino) Piccinini, chegou com a mulher e os cinco filhos para começar uma nova história entre os ‘brasilianos’. Quis a vida que, um século depois, um bisneto também começaria a própria história em outro lugar, mas nem tão longe assim. O destino seria o interior de Venâncio Aires, onde os descendentes de imigrantes germânicos eram maioria e passaram a conviver com um ‘italiano’. Essa é a história de Celso Piccinini, o ‘gringo’ de Vila Santa Emília.

No detalhe, Celso Piccinini, com cerca de 10 anos. Na foto ele está com os primos, todos netos de Pompeo (o senhor sentado) (Foto: Arquivo pessoal)
Joaquim Piccinini e a esposa Tereza Leone (sentados), e o filho Pompeo (de pé), avô de Celso. Pompeo era criança quando a família deixou a Itália (Foto: Arquivo pessoal)

Memórias de uma casa com porão

Celso Lírio Piccinini nasceu no fim de 1953, um ano antes de Roca Sales se emancipar de Estrela. É o quinto das seis crianças de José Alexandre, o Bepe, e Aselinda. Bepe também foi um agricultor ‘das montanhas’, que plantava milho e soja, além de criar porcos, se tornando um dos sócios-fundadores da antiga Cooperativa dos Suinocultores de Encantado (Cosuel), atual Dália. Foi ele quem construiu uma casa com um grande porão, característico das construções de descendentes de italianos. Nesse espaço, onde Bepe fez muito vinho e manteve um alambique, também ficaram boa parte das memórias de Celso.

Essa casa ainda segue de pé, em Linha Marechal Floriano, localidade de Arroio Augusta Alta, interior de Roca, e está eternizada num quadro que decora a parede da residência do filho de Bepe, o Celso, que mora em Vila Santa Emília, no interior de Venâncio Aires. “São muitas lembranças nessa casa de porão alto. Da gente sentado ao redor de um fogão de ferro a lenha. Foi uma vida sacrificada, mas feliz, onde nunca nos faltou nada”, relata Celso Piccinini, hoje com 71 anos, e que há mais de 40 é morador de Vila Santa Emília.

Família numerosa

José Alexandre Piccinini, o Bepe, pai de Celso. O registro é da década de 1940, quando foi pracinha do Exército Brasileiro, no fim da 2ª Guerra Mundial (Foto: Arquivo pessoal)

É na região de Roca Sales que o professor aposentado também revive os tempos com o nonno (vô) Pompeo e a nonna (vô) Rosina. Pompeo, que adorava ouvir rádio e gostava de cantar, era apenas um ‘bambino’ quando chegou com a família no Brasil, vindos de Lavarone, na província de Trento. Ele é filho do Joaquim, o imigrante dos Piccinini. Mas se o bisavô de Celso teve apenas cinco filhos, o avô Pompeo aumentou a média e teve 11. “Sempre foi uma família numerosa”, define Celso, que precisou contar nos dedos para não esquecer nenhum parente.

Entre os 11 filhos de Pompeo, estava José Alexandre, o Bepe, que, antes de se tornar pai do Celso, estava em vias de ir para a Itália. Não por decisão deliberada, mas porque era pracinha em plena 2ª Guerra Mundial (1939-1945). “O pai foi para Rio Grande, estava a postos. Mas não houve necessidade de ir, porque logo veio o fim da guerra.” Ainda naqueles tempos de Exército, Bepe, que era bom de mira, venceu um concurso de tiro e faturou 317 mil réis. “Em 1944 teve uma seca muito grande, não colheram nada e esse dinheiro que o pai ganhou foi a salvação da família.”

Do costume da polenta para o arroz com feijão

Criado em família italiana, ao redor dos nonnos, naturalmente Celso Piccinini cresceu à base de muita massa, queijo, polenta, carne de frango ou porco, e sagu de vinho. Dificilmente comia feijão, por isso estranhou muito quando foi para o seminário de Taquari cursar o ginásio, aos 12 anos. “Em casa era polenta todo dia. E no seminário era arroz e feijão todo dia. A gente não era acostumado com essa comida. No máximo, a mãe fazia a ‘minestrone’, uma sopa com arroz e massa e às vezes feijão misturado”, recorda Celso.

Sineta de bronze que veio da Itália, junto com o bisavô Joaquim. Segundo Celso Piccinini, que guarda o objeto centenário em casa, item era pendurado no pescoço da mula que puxava a frente da tropa de animais (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Também cultural entre as famílias católicas, era comum ter alguém que seguisse a vida religiosa. Celso tem dois tios padres e, como ele foi seminarista e depois seguiu para o noviciado em Daltro Filho – tinha os votos temporários para se tornar frei -, o caminho se desenhava para o mesmo. “Eu queria ser padre, mas claro que tinha minhas dúvidas. Depois fui cursar a faculdade de Filosofia em Porto Alegre, onde me formei em 1978. Cheguei a cursar metade de Teologia, mas aí entendi que não era o meu caminho.”

Quis o destino que, por causa de um religioso e de amigos em comum, Celso conheceu a que se tornaria a companheira de vida. Foi em 1981 que começou o namoro com Lourdes Reckziegel, hoje com 73 anos. No início da década de 1980, ela também estava em Porto Alegre trabalhando com o irmão, frei Arno Reckziegel, conhecido de Celso.

O gringo conhecido pelo trabalho na sala de aula e na comunidade

Celso e Lourdes casaram em 1983 e, no projeto de vida, havia o desejo de sair da cidade grande. Assim, decidiram morar em Venâncio Aires, em Vila Santa Emília, de onde Lourdes é natural e os pais dela, Affonso e Bertha, também moravam. Na época, Piccinini tinha passado em um concurso público do Estado e a primeira escola venâncio-airense em que trabalhou foi a Professora Helena Bohn, de Vila Teresinha. Lá lecionou diversas disciplinas, como Estudos Sociais, Filosofia e Sociologia. Lourdes, professora de Português, trabalhou na Escola São Luiz, de Santa Emília.

Foram sete anos na Helena Bohn, até que a escola São Luiz deixou de ser cenecista e passou para estadual, em 1990. O ‘professor gringo’, como muitos o chamavam, tinha o desejo de trabalhar naquela que já considerava sua comunidade e acabou transferido. Assumiu como diretor em 1991 e quem muito lhe ajudou a ‘organizar’ a nova escola foi o professor Protácio Lourenço Werlang. Piccinini ficou na direção até 2001 e depois disso como professor de História, Geografia e Ensino Religioso, até se aposentar, em 2015. Nesse meio tempo, também lecionou um pouco na Escola Léo João Frölich, de Linha 17 de Junho.

Celso casou com Lourdes Reckziegel, natural de Vila Santa Emília, onde moram desde 1983 (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Igreja e o Luizão

Do pai, avô e bisavô que moraram em Roca Sales, no entorno da Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Celso destaca que todos sempre foram envolvidos de forma comunitária, participando de associações e com cargos diretivos. Dessa forma, seria mais do que natural de que um Piccinini seguisse assim, mesmo ‘longe do ninho’.

Nesses mais de 40 anos de Venâncio Aires, o gringo de Vila Santa Emília é uma das maiores referências comunitárias para a Igreja São Luiz, onde foi catequista por mais de 20 anos e ainda é ministro, e para a Associação Esportiva, Cultural e Recreativa São Luiz (Luizão), na qual foi tesoureiro por muitas gestões e é o atual vice-tesoureiro. Piccinini também relata o orgulho de ter sido técnico do time de futebol de campo do São Luiz, em 1984. “Foi o primeiro título, de campeões municipais da segunda divisão.”

Família do gringo

Celso e Lourdes têm dois filhos: Cíntia, 41 anos, que reside em Vera Cruz, e Cássio, 37, morador de Venâncio. O casal também é avô de Vinícius, 16 anos, João Vitor, 10, Joaquim, 9 (nome em homenagem ao tetravô imigrante), e a caçula Maria Luísa, 3 anos.

O acolhimento dos ‘alemães’ e os costumes mantidos

Para um gringo que na adolescência estranhou a rotina de comer arroz e feijão, hoje a ‘dupla’ não falta ao prato no dia a dia da casa dos Piccinini. Tanto, que até planta feijão. Mas, como bom descendente de italiano, não perdeu os costumes aprendidos naquela casa de porão alto em Roca Sales. Continua comendo bastante polenta, não fica sem queijo e salamito, nem abre mão de uma tacinha diária de vinho tinto. No quintal da casa, cultiva radicci, uma hortaliça bastante apreciada pelos gringos estado afora. As saladas, aliás, também não faltam à mesa e Celso e Lourdes gostam de temperar com vinagre feito à base de vinho.

Piccinini se aposentou como professor há 10 anos e recentemente também se ‘aposentou’ dos jogos de bocha e futsal, um dos seus maiores lazeres. “Eu já passei dos 70 anos, a gente não aguenta mais tudo. Meu pai sempre dizia: ‘dopo vecchio, presentarsi le magagne’. Quer dizer que depois da velhice, aparecem as encrencas e eu já estou nessa”, comenta, entre risos. Mesmo assim, segue com as atividades no Luizão, na igreja e gosta de jogar canastra. E, claro, quando os netos estão em casa, brinca e mima todos, como um bom nonno faz.

Vinho, polenta, queijo e salamito: alguns dos costumes italianos que Celso mantêm (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Sobre Vila Santa Emília

Perguntado sobre o que Venâncio e Vila Santa Emília deram àquele que foi, durante um bom tempo, o único gringo da localidade, Piccinini fala em acolhimento. “Aquilo que imaginei para nossa vida, foi completo. Fui muito bem acolhido e encontrei o que desejava numa comunidade: esportes como lazer, festividades, igreja e escolas próximas, e um ambiente de respeito e confiança.” Sobre o que o gringo deu para Santa Emília, ele destaca o envolvimento com a comunidade. “Todos os meus antepassados sempre estiveram envolvidos com trabalho comunitário, então como não fazer isso também? Como não trabalhar pela minha comunidade? Tenho orgulho e satisfação pela minha família, em qualquer comunidade que ela for, é acolhida com respeito. No interior de Venâncio tem muito disso, do valor da palavra, de ajudar quem precisa e um espírito associativo.”

Perguntado, ainda, se estranhou os primeiros tempos em meio a uma localidade com predominância de descendentes germânicos, o gringo brinca. “O alemão só é mais contido. Já o italiano é mais expansivo e fala até com as mãos”, define, entre risos.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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