A história de Ivo Seidel: o maestro das bandas escolares

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Aquele fim de 1955 estava mais musical nas terras dos Seidel, em Linha Arroio Grande. Sentado sobre as raízes expostas de uma velha laranjeira, Ivo, então com 9 anos, ‘fuçava’ incansavelmente numa sanfona Hohner de 8 baixos. O menino, que nas festas de comunidade ficava a maior parte do tempo observando as bandinhas, resgatou o instrumento que estava guardado no roupeiro do avô paterno, Antônio, para também ‘brincar’ de ser músico.

Sozinho à sombra do pé de laranja, aprendeu a tocar a sanfona, ‘de ouvido’ mesmo, em questão de três dias. O então guri talvez não tivesse dimensão naquele momento, mas começava ali uma trajetória de mais de 50 anos como músico, professor e maestro, que ajudou a fundar as bandas de três escolas de Venâncio Aires e marcando gerações até hoje. Neste 1º de outubro, no Dia Internacional da Música, a Folha do Mate conta a trajetória de Ivo Astor Seidel.

Aos 12 anos, aluno e professor de acordeon

Até os seis anos de idade, o primogênito de Leopoldo (1925-1990) e Cilma (1927-2022) já tinha rodado bastante pelo interior de Venâncio Aires. Ivo Astor Seidel nasceu em 9 de setembro de 1946 em Linha Maria Madalena, mas a família ainda passaria por Harmonia da Costa e Linha 17 de Junho, antes de se estabelecer em Linha Arroio Grande.

Na escola da localidade, a José Bonifácio, o menino foi alfabetizado e viveu uma situação incomum. “A escola terminava no 4º ano e quando eu concluí essa série, meu pai achou que eu era muito novo para sair. Sempre fui ótimo aluno, mas acabei repetindo de ano”, conta, entre risos. Na metade da década de 1950, ainda sem uma rádio própria (o que aconteceria apenas em 1959 com o início das atividades da Rádio Venâncio Aires AM), muitas famílias que já tinham aparelhos em casa sintonizavam a Rádio Santa Cruz AM, que trazia bandas e orquestras para tocar ao vivo. Criado nesse ambiente musical, ouvindo esses grupos na rádio, observando os músicos nas festas da localidade e depois de dominar, em três dias, a sanfona Hohner do avô, Ivo tinha certeza: seria músico. E a coisa andou rápido, porque logo foi convidado para tocar em festas no antigo salão de Maurício da Rosa, no Arroio Grande.

Ivo seguiu com a sanfona do avô por um tempo (que alguns meninos maldosamente chamavam de ‘caixinha de abelha’), mas, aos 12, um presente do pai: o tão sonhado acordeon. Os irmãos mais novos, Hildo (já falecido) e Hélio, hoje com 72 anos (que chegou a tocar em conjuntos de baile), também foram presenteados com um pandeiro e um violão, respectivamente.

Mas foi Ivo quem frequentou aulas com a professora Hedy Fischer, próximo ao antigo curtume Closs. “Aprendi muito rápido e, em três meses, eu já tinha virado professor. Porque lá no interior, muitos adultos tinham o instrumento em casa e me pediram para ensinar. Assim comecei.”

Registro de 1958, quando tinha 12 anos e também já ensinava acordeon (Foto: Arquivo pessoal)

Um quase ‘Xiru’

Apesar da pouca idade, o domínio do acordeon lhe rendeu convites e a possibilidade de se tornar profissional já aos 14 anos. Ivo Seidel participou de vários grupos, entre eles o Ouro Verde, a Orquestra Vida Azul, o conjunto Mercado e o Trio Harmonia.

À esquerda com acordeon, na época do conjunto Ouro Verde (Foto: Arquivo pessoal)

Foi neste último que quase se tornou uma estrela estadual. O Trio Harmonia foi formado em 1966 por Ivo, Nilo Kretschmer e Pedro Müller Filho. Os jovens tinham um programa ao vivo na RVA chamado ‘Ronda Campeira’, onde boa parte das músicas tinha tom humorístico. O formato se assemelhava muito ao que fazia outro trio (com música regionalista adaptada ao estilo germânico) e cujo nome foi dado por ninguém menos que o tradicionalista Paixão Côrtes: Os Três Xirus.

tocando trompete no grupo Mercado (Foto: Arquivo pessoal)

O grupo original era formado por Leonardo e pelos irmãos Bruno e Elmo Neher. Eles chegaram a gravar composições dos jovens venâncio-airenses, como ‘Unsa kerb’, ‘Die krop frau’ e ‘Kolonist uns kolonie’, cujas letras são de Nilo Kretschmer e as músicas de Ivo Seidel. Tal proximidade acabou rendendo um convite. “Quando o Leonardo estava para sair do trio e seguir carreira solo [início da década de 1970], me convidaram para substitui-lo. Mas eu tinha outros planos, tinha minha família, e acabei não indo”, lembra, falando do momento em que quase virou um dos Xirus.

Família

• Foi através da música que Ivo também formou sua família. Isso porque conheceu a esposa Elli, 76 anos, no antigo Salão Kunkel, em Linha Duvidosa, num baile em 1967. “Eu estava tocando com o Vida Azul e no fim da apresentação fui conversar com ela.” O casamento aconteceu em 1969 e tiveram duas filhas: Simone, hoje com 48 anos, e Fabiana, 44. Ambas, enquanto estudantes do Gaspar, também participaram da banda, tocando instrumentos de sopro. Ivo e Elli têm dois netos: Germano, 31 anos, e Vicente, de 11.

15 – é o número aproximado de instrumentos que Ivo Seidel sabe tocar, entre sopro, corda e percussão.

A composição de várias músicas gravadas por diferentes grupos rendeu a Ivo o título de Sócio Efetivo da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música.

Formação

• Embora tenha aprendido muita coisa por conta, Ivo Seidel também participou do curso de Acordeon no Instituto Musical Supremo de Santa Cruz do Sul (1968) e fez um curso de Regência, no Departamento de Assuntos Culturais, em Porto Alegre (1973).

• A formação superior ele concluiu em 1983 (Licenciatura Plena em Português e Respectiva Literatura, pela antiga Faculdade Integrada de Santa Cruz). O curso lhe habilitou para ‘comunicação e expressão’, o que lhe possibilitou ser professor de música em sala de aula.

Momentos históricos com a banda do Gaspar

Depois de rodar em diversos grupos e quase virar um ‘Xiru’, Ivo Seidel dá início a uma nova etapa profissional como professor de música nos colégios Gaspar Silveira Martins e Oliveira Castilhos, onde ajudou a fundar as bandas em 1972. “Cada uma tinha poucos instrumentos, mas suficiente para começarmos. Existia a teoria em sala de aula, mas as próprias escolas tinham interesse nesses projetos. Basta lembrar dos desfiles de Sete de Setembro de antigamente, em que as bandas eram ‘o cartão de visitas’ das escolas. Era algo muito bonito e valorizado”, conta o professor.

A partir de 1974, Ivo Seidel se dedica exclusivamente ao colégio Gaspar, onde com a banda e o coral viveu momentos históricos, entre eles com o ex-presidente Ernesto Geisel, que governou o Brasil de 1974 a 1979. Foi Geisel quem destinou recursos para comprar cerca de 60 instrumentos em 1975. No ano seguinte, a banda e o coral, liderados por Ivo Seidel, puderam se apresentar pessoalmente ao presidente, dentro do Palácio do Planalto, em Brasília.

No canto, à direita, Ivo Seidel participou do LP que teve a primeira gravação do hino de Venâncio Aires (Foto: Arquivo pessoal)

A evolução da banda seguiu e novas oportunidades surgiram, com apresentações em outros estados. Em 1982, participou do Campeonato Nacional de Bandas, em São Paulo, promovido pela Rádio Record. Já em 1984, também no estado paulista, foi vice-campeã nacional. Mas a banda também ultrapassou fronteiras internacionais, com apresentações na Argentina, Uruguai e Paraguai. “Em Buenos Aires, fomos a única escola de língua não espanhola num evento da embaixada alemã. Quando chegamos lá, entre várias bandeiras, ver a brasileira no meio delas foi uma grande emoção”, lembra Ivo Seidel.

O maestro também participou de outro momento importante: a gravação do primeiro LP da banda, em 1985. “Não tinha um registro do hino de Venâncio Aires e por isso o fizemos”, explica. A gravação, aliás, é conhecida dos venâncio-airenses, porque é a usada ainda hoje em solenidades.

A música antes e depois de Ivo Seidel

Como contado até aqui, Seidel passou por grupos musicais e fez cursos, mas se considera um autodidata, que mais aprendeu do que ensinou. Profissionalmente, foram 54 anos dedicados à música, até 2012, quando saiu da escola Monte das Tabocas e se aposentou ‘de vez’.

O maestro diz que não sabe com quantos jovens teve oportunidade de trabalhar, mas acredita que ‘as sementes se espalharam’. Entre as ‘crias’ dele, está Daniel Böhm, influenciado desde pequeno enquanto estudante do Monte das Tabocas e que hoje comanda os projetos musicais da Comunidade Evangélica Luterana e é o maestro da prestigiada Orquestra de Venâncio Aires.

“Até hoje, muitas pessoas, adultos na casa dos 40 e 50 anos, me encontram na rua e lembram com carinho dos tempos de escola. São gerações que tive oportunidade de colocar em contato com a música. Muitos viraram profissionais, outros ouvintes, mas todos conscientes de que música é cultura e é necessária na nossa vida.”

CD gravado com a banda da escola Monte das Tabocas, em 2004 (Foto: Arquivo pessoal)

Das três bandas escolares que fundou, apenas o Gaspar mantém as atividades. O Colégio Oliveira encerrou as atividades em 2015 e o Monte das Tabocas esteve na ativa entre a década de 1980 e 2012, inclusive com dois CDs gravados.

Recentemente, o som das bandas escolares voltou a ser ouvido com mais força em Venâncio Aires, nas escolas Mariante, Cidade Nova e Odila Rosa Scherer. “Esse movimento é muito positivo para as escolas e os alunos. Seria uma lástima não termos essas atividades em Venâncio. Fico feliz em ver esses trabalhos.”

O maestro também diz que a música lhe proporcionou momentos emocionantes, como um vivido na década de 1980. Após uma apresentação da banda do Gaspar no Clube de Leituras, ele ouviu a seguinte frase: “A história da música em Venâncio Aires se divide em duas partes: antes e depois de Ivo Seidel.” A frase foi dita por Guido Fischer, que foi um dos primeiros bancários do Banco do Brasil na cidade e presidiu o Lions Clube. Ele também era marido de Hedy, a professora que ensinou acordeon para Ivo quanto ele tinha 12 anos. “Não sei se merecia tanto, mas guardo essa fala como um dos momentos mais marcantes nesses mais de 50 anos dedicados à música.”

“O ‘sor’ Ivo continua sendo um grande exemplo para mim. Desde a atenção na infância, ao me ver tocar e me direcionar à banda, até os dias atuais, especialmente quando trabalho com grupos semelhantes ao que tínhamos no Monte das Tabocas, na condução dos alunos e nos arranjos.”

DANIEL BÖHM – Maestro da Orquestra de Venâncio Aires e ex-aluno de Ivo Seidel

Recanto especial do ‘Karabí’

Ivo Seidel está aposentado, mas ainda ‘respira’ música e a divide com amigos, família ou apenas para o próprio prazer. A maior parte desses momentos vive na sua casa de campo em Monte Alegre, no município de Vale Verde. Embora ainda mantenha residência em Venâncio Aires, ele confessa que seu lugar favorito é o ‘Recanto Costeiro’, nome com o qual batizou o local à beira do rio Jacuí. O apreço é tanto, que até fez uma música com o mesmo nome para homenagear o lugar.

O acordeon e o trompete (dois dos instrumentos que mais lhe acompanharam na vida profissional) seguem junto ao maestro, mas atualmente o violão também tem sido um grande companheiro. Nele, gosta de dedilhar músicas bem específicas. “Eu me apaixonei por essa música nativista mais rebuscada, com letra e melodia mais elaboradas, mais introspectivas. Gosto muito.”

Na casa de campo em Monte Alegre, junto com dois instrumentos que lhe acompanham e o mantêm sintonizados com a música (Foto: Arquivo pessoal)

Entre os amigos íntimos, Seidel revela que alguns brincam e lhe apelidaram de ‘Karabí’. A referência é ao maestro Isaac Karabtchevsky que, desde os anos 1970, tem uma das “carreiras mais brilhantes no cenário musical brasileiro e internacional” (conforme publicação do jornal inglês The Guardian). Karabtchevsky está com 87 anos e por 26 foi maestro da Orquestra Sinfônica Brasileira.

Guardadas as proporções, os amigos de Seidel não estão errados na comparação. Mas ao vermos que sua obra foi tão importante e impactou na vida de tantas pessoas, por tantas décadas, é o seu nome que também já virou referência. Então não é o ‘Karabtchevsky de Venâncio’. Ele é o professor e maestro Ivo Seidel. E é de Venâncio Aires.

“Eu realizei um sonho de criança. Nessa caminhada de ser músico, deixei sementes espalhadas e que germinaram, produzindo apreciadores da música e talentos que orgulham nosso município.”

IVO ASTOR SEIDEL – Professor e maestro



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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