Mercedes Sosa (1935-2009), uma das maiores cantoras da América Latina, sempre defendeu o ‘pan-americanismo’ e a integração dos povos latinos. Tanto, que sua música não tinha fronteiras e uma em especial ela gravou na década de 1960: ‘Recuerdos del Paraguay’. A música fala de nostalgia, mas também de sonhos e de anseios, sentimentos compartilhados por centenas de gaúchos que, na década de 1970, trocaram o Rio Grande do Sul por terras ainda inexploradas no Paraguai, atrás de novas oportunidades. Entre esses ‘colonos’, chamados lá de ‘brasiguaios’, existem venâncio-airenses, que há quase 50 anos tentaram a vida do outro lado da fronteira. Nesta reportagem, a Folha do Mate resgata as memórias dos que voltaram e de quem ficou e ajudou a formar cidades.
Mais de duas décadas e o gosto pelo tereré
A História da década de 1970 fala de muitos conflitos políticos e sociais em toda América do Sul. Eram tempos de territórios com fronteiras ainda em formação e de governos ditatoriais em vários países. E, esse cenário de incertezas, provocou movimentos de trabalhadores que, mesmo com dúvida, precisavam ou decidiram arriscar coisas novas.
Foi há 50 anos que começou, de fato, a emigração brasileira para o Paraguai. Do Rio Grande do Sul, muitos descendentes de colonos alemães que para cá vieram no século XIX, também se tornaram colonizadores. Afinal, estavam indo, muitos na cara e na coragem, para lugares completamente inexplorados o que, por si só, já podia ser considerada uma epopeia contemporânea.
Hildor e Cilma Becker casaram em 1973, mesmo ano em que o cunhado, Arcélio Reckziegel, trocou Linha Maria Madalena, no interior de Venâncio Aires, por Capanema, no oeste do Paraná, muito perto do Paraguai. O casal sabia que por lá o parente foi buscar novas oportunidades com uma madeireira e já falava sobre ‘outras possibilidades’ depois da fronteira. “Naquele ano fomos fazer uma visita e, na rodoviária de Toledo (PR), o que a gente só ouvia eram brasileiros falando de ir para o Paraguai”, recorda Cilma, hoje com 71 anos.
Ainda um jovem casal e um filho bebê (Leandro, hoje com 45 anos), os Becker decidiram, em 1978, sair de Centro Linha Brasil e também tentar. Aceitaram o convite do cunhado, que se preparava para abrir uma serraria no Paraguai, em terras de muito mato, portanto, muita madeira. Moraram por dois anos no Paraná, até que a mudança definitiva aconteceu em 1980, já com mais uma filha (Vania nasceu em 1979). “Acho que foi o inverno mais frio que já vivemos. Fomos de muda em dois caminhões, com duas vacas e vários sacos de farinha de trigo. Levou uns meses para construir a casa e, nesse meio tempo, dormimos em barracas na carroceria do caminhão”, relata Hildor, que está com 76 anos.
24 anos
Os Becker e os Reckziegel foram para Raul Peña, a 142 quilômetros da fronteira com o Paraná, uma vila fundada por brasileiros em 1977. “Tinha umas 10 casas, quase tudo era gaúcho, então quase não se ouvia espanhol. Quem já estava por lá eram agricultores, plantavam muita soja, trigo, milho, girassol e hortelã”, conta Cilma.
Sem estrutura, foram aqueles brasileiros que literalmente ajudaram a construir a vila do zero. “Como tinha muito ‘alemão’, a comunidade Evangélica Luterana era forte. Daí se reuniram e montaram um hospital pequeno. Tinha uma farmácia, um quarto e um quarto para partos”, relata a aposentada, que ainda se tornou mãe de Simone, nascida no Paraguai, em 1987.
Hildor, que sempre foi marceneiro, seguiu no ramo da serraria até 1989, quando vendeu sua parte e decidiu comprar terras para cultivar. O preço da terra no Paraguai, aliás, foi outro atrativo naquela época, já que os lotes eram muito mais baratos em relação ao Brasil. A soja sempre foi e ainda é a principal cultura. “Tem bastante tabaco no Paraguai, mas mais para a região Norte. Curioso que quase ninguém fuma por lá”, comenta o aposentado.
Becker também conta das dificuldades com comunicação, o que lhe causa uma lembrança muito triste. “Demorou dias até conseguirem uma ligação para lá, até na cooperativa que tinha. Daí fiquei sabendo que o pai estava doente [Herbert]. Quando cheguei em Venâncio, ele já tinha falecido.”
A família seguiu por lá até 2004. “Nessa época, para produzir, já era necessário investir mais em maquinário, o que ficou ‘pesado’. Daí decidimos: temos que continuar trabalhando, então podemos trabalhar em Venâncio mesmo”, relata Cilma. O casal hoje mora em Centro Linha Brasil e, dos 24 anos de Paraguai, alguns costumes não se perderam. Gostam muito de fazer a ‘chipa’, receita que lembra um bolinho de polvilho, mas do que não abrem mão é o tereré. “É o que os guaranis [etnia indígena] tomam e aprendemos a gostar também. Tomamos mais que o chimarrão. Aliás, esse dialeto guarani, o Leandro [filho] fala bem até hoje”, comenta Cilma. O primogênito e a filha do meio, Vania, seguem morando no Paraguai. Ele em Raul Peña e ela em Carlos Antonio López.
O cunhado ficou
Arcélio Reckziegel, hoje com 76 anos, seguiu no Paraguai, junto com a esposa, Gerta, 79 anos. Já são quase 43 anos do outro lado da fronteira e eles testemunharam a vila de Raul Peña crescer e virar município. Os filhos Edson e Solange são brasileiros, mas os sete netos são paraguaios.
Reckziegel, que segue na agricultura, conta que o movimento de brasileiros por lá ainda é grande. “A cidade está estruturada, com hospital, escolas e um comércio na parte de laticínios. Mas a agricultura ainda é o forte e todos os insumos vêm do Brasil.”
Sobre a possibilidade de voltar, o cunhado de Cilma e Hildor está decidido. “Claro que a gente tem saudade da nossa terra natal e vamos visitar todo ano. Mas minha família está toda aqui, então vamos ficando.”
Outras famílias
• Além dos Reckziegel e dos Becker, outras famílias de Venâncio foram para o Paraguai na década de 1970. Entre elas, membros dos Uhmann e Johann (Linha Cecília) e Lahr e Posselt (Linha Isabel).
Em poucos meses, uma grande experiência de vida
Em 24 de agosto de 1977, a Folha do Mate trouxe na capa a informação de que agricultores de Venâncio Aires emigrariam para o Paraguai. Eram da família Fischer, da região do Grão-Pará e da Linha 17 de Junho, que também estavam indo atrás de novas oportunidades. Entre eles, Geraldo e Isolde, com a filha Flávia, de apenas dois anos na época. O casal seguiu os passos do irmão de Geraldo, Pedro, que já tinha ido meses antes para trabalhar na fazenda de Andreas Ludwig, um alemão que também emigrou ao Paraguai e procurava ajuda para desbravar mato e formar lavouras.
Na viagem de ônibus, que durou três dias, foram também os pais de Geraldo (Luiz Bernardo e Erminda) e mais cinco irmãos: Nilo e a esposa, Flávio (solteiro) e as ainda meninas Dulce, Valéria e Inês. A fazenda era um verdadeiro descampado, na região da atual cidade de Yby Yaú, a cerca de 130 quilômetros de Ponta Porã, na divisa com o estado do Mato Grosso do Sul.
“Nossa primeira moradia foi em barraca, debaixo do galpão onde ficava o maquinário. De noite, a gente ouvia tudo que era bicho, até onça”, lembra Isolde. O marido, Geraldo, conta das motivações que levaram a família até lá. “O preço da terra era muito mais barato. Para se ter uma ideia, o que tínhamos em Venâncio daria para comprar vários hectares lá. Nós fomos a convite desse alemão, que pagou a passagem e era muito correto com salário e nos construiu as casas. E, se não desse certo, a gente estava tranquilo que podíamos voltar.”
O agricultor relata sobre as dificuldades iniciais. “Tudo era longe e difícil acesso. Eu saía de manhã com um trator carregado de alimentos e voltava de noite com insumos. Fazia 130 quilômetros todo dia de trator. Não tinha asfalto, então, se chovia, nem dava para sair, porque sabia que ia atolar.”
A falta de estrutura também começou a preocupar em outro aspecto: Isolde engravidou e a farmácia mais próxima ficava a quilômetros. “A Flávia era tão pequena e a gravidez do Márcio foi muito difícil. Além disso, cada carta que a gente recebia de Venâncio, vinha cheia de saudade dos meus pais. O Geraldo sempre foi mais ‘passarinho’, solto, mas eu sou apegada ao ninho”, revela Isolde.
Assim, com receio de não ter a assistência necessária durante a gestação, eles decidiram voltar, sete meses depois de partirem. Nessa retorno, também estiveram Nilo e a esposa, Luiz Bernardo e Erminda e as três filhas menores, que não se adaptaram. Flávio ficou mais um tempo e depois também voltou para o Brasil, mas para Santa Catarina, de a esposa é natural.
“Foram apenas poucos meses, mas uma grande experiência de vida. Ainda vamos passear por lá [visitar o irmão Pedro, que ficou], mas é aqui que conhecemos tudo. O ciclo sempre se refaz em qualquer lugar, mas às vezes demora, e nós decidimos voltar”, destaca Geraldo.
Primeira-feira, segunda-feira…
Embora a língua não tenha sido exatamente um empecilho, eventualmente ela causava algumas confusões. Geraldo Fischer lembra, entre risos, da vez que um ‘coronel’, dono de uma fazenda próxima de onde eles moravam, chegou oferecendo carne. “A gente ia ajudar a carnear e disse que iríamos na segunda-feira e ele concordou. Mas chegamos lá, não tinha nada preparado e o coronel perguntou: mas hoje não é a ‘primeira-feira’?”
Foi aí que se entendeu a confusão: quando Geraldo disse ‘segunda-feira’, o coronel achou que seria o segundo dia da semana ou, para os paraguaios, o equivalente à terça-feira. Em espanhol, com exceção do sábado e domingo, os demais dias da semana têm nomes diferentes: lunes (segunda-feira), martes (terça), miércoles (quarta), jueves (quinta) e viernes (sexta).
“Minha história está aqui”
Dos Fischer que emigraram, apenas Pedro, hoje com 71 anos, ficou. Ele mora no interior de Yby Yaú, próximo ao Mato Grosso do Sul. Com a esposa Maria (já falecida) teve três filhas: Andrea (também já falecida), Adriana e Danieli, paraguaias, assim como os sete netos.
“Eu ainda não tinha, digamos, começado uma vida em Venâncio, então não tinha a nada a perder. E acabei gostando daqui”, relata o agricultor, sobre o porquê de permanecer. Antes de comprar a própria terra, onde cultivou grãos, algodão e banana, trabalhou por 10 anos com o tal alemão que recebeu os Fischer em 1977.
Nesses mais de 40 anos, ainda convive com muitos compatriotas. “Aqui na região tem muito gaúcho e catarinense e por isso tem festas parecidas como as que têm por aí, como Oktoberfest e um tipo de festa do colono.” Nas décadas como cidadão paraguaio, naturalmente adotou outra língua. Por isso, durante a entrevista, inevitavelmente deixou ‘escapar’ algumas palavras em espanhol para a ‘periodista’ (jornalista), como se referiu a esta repórter. Mas, como ele mesmo destacou, “nos entendemos mui tranquilamente.”
Sobre os costumes da terra natal, diz que o chimarrão segue como hábito diário. “Prefiro chimarrão do que tereré.” Quando perguntado se não vai voltar para seguir tomando seu chimarrão, mas em Venâncio Aires, Pedro disse que é uma pergunta difícil de responder. “As lembranças sempre vêm quando estou com a cuia na mão. Mas a família que construí está aqui, então minha história também está aqui no Paraguai.”
Contexto geográfico e histórico
• Carlos Wagner, jornalista com inúmeros prêmios e que trabalhou no jornal Zero Hora por mais de 30 anos, se especializou em temas sociais como conflitos fundiários e de fronteira. Além de repórter especial, tem uma carreira literária e, entre as obras, ‘Brasiguaios: homens sem pátria’ e ‘Brasil de bombachas’, onde fala sobre esse povoamento do Meio-Oeste brasileiro na década de 1970.
• Em entrevista à Folha do Mate, Wagner explica que o movimento migratório seguiu uma leva que também já foi registrada historicamente em outras divisas, mais ao norte do Brasil. “Houve um grande núcleo de gaúchos para ocupar essas terras, como na Bolívia e toda região amazônica. Nos anos 1970, o que apareceu ‘disponível’ e mais barato, foram as terras no Paraguai. E isso aconteceu porque já tinha muito gaúcho morando no oeste de Santa Catarina e Paraná.”
• O jornalista diz que, a formação dos atuais estados paraguaios, em que boa parte da população é brasileira, também passou pela construção da Usina Hidroelétrica de Itaipu. “A obra se estendeu de 1975 a 1982 e atraiu trabalhadores de todos os cantos dos territórios brasileiro e paraguaio para a região de Foz do Iguaçu (PR) e Ciudad del Este (Paraguai), na época chamada Puerto Stroessner, em homenagem ao então ditador paraguaio, Alfredo Stroessner.”
• Com a obra terminada, centenas de operários ficaram na região. Além disso, no fim da década de 1970, Stroessner resolveu atrair e povoar as regiões do país com agricultores brasileiros, que ficaram conhecidos como brasiguaios. “A ideia do governo era levar esses agricultores para desmatar e plantar. O trabalho deles ajudou a construir cidades inteiras. Mas um problema até hoje é a titulação de terras, porque o governo vendia barato, mas para mais pessoas ao mesmo tempo.”
• Ainda conforme Carlos Wagner, hoje os brasiguaios fazem parte de uma consistente classe média rural e colocaram o país na galeria dos grandes produtores de soja. “Considerando filhos e netos desses brasileiros e que são cidadãos paraguaios, estamos falando de 1 milhão de pessoas. E lá atrás, o que facilitou muito a integração, foi a cultura guarani, por causa do chimarrão e do tereré.”