
As décadas de 1940 a 1960 ainda são consideradas culturalmente e socialmente conservadoras, em que as coisas pareciam ‘encaixotadas’ e rigorosamente fiéis aos costumes. É como se tudo fosse sob medida, como as roupas da época.
Em Venâncio Aires, uma cidade em formação naquele tempo, era comum ver homens usando terno, camisa e gravata, tudo sob encomenda. E quem ajudou a vestir muita gente ‘na beca’ foi Renato Aristeu dos Santos, 84 anos, que até hoje toca uma profissão quase em extinção. Alfaiate desde guri, já são mais de 70 anos nesse trabalho.
A primeira vez que se viu em meio a tecidos, linhas e tesouras, Santos tinha 13 anos. Foi em 1948 que começou a ajudar na alfaiataria de Alfredo Ruschel, em Lajeado, de onde é natural. “Com 16 anos eu já era profissional e vi que precisava me estabelecer.” Decidido a ampliar os horizontes, Santos fez a primeira parada em Mato Leitão, mas achou a então localidade de Venâncio Aires “acanhada” e seguiu adiante, chegando no centro da cidade.
Assim, passou a trabalhar na alfaiataria de Helmuth Rüdiger até decidir ter o próprio negócio. Foi em 1957, na rua Osvaldo Aranha (onde hoje é a Tânia Novidades), que Renato dos Santos abriu sua alfaiataria. Neste endereço permaneceu por quase 20 anos e, em 1976, subiu um pouco ‘a rua principal’ e adquiriu um prédio ao lado do Banco do Brasil.
O alfaiate também escolheu Venâncio para formar seu lar e construiu sua casa, em 1965, na rua Coronel Agra, onde mora até hoje. A opção por essa rua, primeiro, foi para fugir do movimento intenso da ‘estrada da produção’ (General Osório), onde morava; e segundo, por insistência da esposa Leni, que queria ficar mais perto da irmã, já estabelecida na Coronel Agra. Desde então, Santos mora lá, para onde há quatro anos também transferiu sua alfaiataria.
INFÂNCIA
1 Renato dos Santos cresceu na ‘barranca’ do rio Taquari, em Cruzeiro do Sul, quando o município ainda pertencia a Lajeado. Em 1941, naquela que é considerada a maior enchente do Taquari, ele viu a casa ficar submersa, com apenas ‘um palmo’ acima das janelas.
2 Antes da água avançar, o pai, Manoel, que trabalhava no Daer, amarrou 30 carrinhos de mão (usados no trabalho de estradas e pontes) em uma laranjeira. No dia seguinte, todos estavam boiando. “As cordas aguentaram.”
3 Além da enchente de 41, o alfaiate lembra das consequências da 2ª Guerra Mundial (1939-1945). Diretamente na região, ele lembra que faltaram mantimentos e outros itens. Sem querosene, os lampiões eram acendidos com banha. Nas vendas, açúcar era artigo de luxo, já que as usinas paulitas não conseguiam transporte.
4 Em setembro de 1945, Renato lembra que Manoel comprou a edição dominical do Correio do Povo. “Tínhamos vizinhos analfabetos e meu pai leu em voz alta para todos ouvirem sobre o fim da Guerra.”
Os ternos de Scherer e Goulart
Em tempos de uma Venâncio Aires pequena em tamanho e população, conviver com personalidades era mais comum. No caso de Renato dos Santos, a profissão lhe permitiu uma proximidade com duas figuras históricas: os ex-prefeitos Alfredo Scherer e Salvador Stein Goulart, que comandaram o município durante a maior parte do período entre 1960 e 1970.
No caso de Scherer, Santos chegou a confeccionar, em pouco tempo, 20 ternos. “Quando chegou o telefone na cidade, ele ligava e só pedia um mais claro e outro mais escuro. O estilo do corte era comigo.” Além disso, o alfaiate chegou a fazer ternos para Alfredo Scherer presentear amigos políticos, até de Porto Alegre.
Quanto a Salvador Stein Goulart, além dos ternos, Renato dos Santos prestava ‘outro serviço’. “O Goulart não tinha carro e, quando chovia, muitas vezes me pedia carona até a Prefeitura”, lembra, entre risos. Saudoso da amizade que tinha com os dois ex-prefeitos, o alfaiate diz que a profissão também lhe permitiu conhecer quase toda a comunidade. “Hoje encontro homens, já avôs, que quando eram meninos iam com seus pais para fazer um terno. Conheci muita gente.”
OUTROS TEMPOS
Renato dos Santos afirma que hoje são raras as pessoas que procuram por uma roupa sob medida. “São poucos aqueles que querem uma roupa exclusivamente feita para si.” Em outros tempos, o alfaiate diz que a demanda era tanta, que trabalhar três turnos era normal. “Hoje está tudo mudado, mas ainda há grupos de pessoas que procuram por ternos. Ainda faço muitos para professores da Unisc e da Unisinos, por exemplo”, conta, se referindo às universidades de Santa Cruz do Sul e de São Leopoldo. Bombachas também seguem na linha de produção, para grupos tradicionalistas de várias cidades da região.
Buenos Aires, para sempre
Se muito já trabalhou, muito também viajou. Durante décadas, Renato dos Santos fez isso ao lado da esposa Leni Maria Hermes dos Santos, com quem casou em 1959. Entre seus lugares favoritos, a capital da Argentina, Buenos Aires, para onde viajaram pela primeira vez em 1971, a bordo de um Fusca. No veículo, também foram os três filhos do casal: Maria Lúcia, Renato Júnior e André Ricardo. “Fizemos isso muitas vezes e por grande parte do Brasil também, viajando de carro.” Sobre quatro rodas, a família foi ainda para o Rio de Janeiro, Brasília, Pará e Mato Grosso.
Mas, de todos os lugares, Buenos Aires sempre será o favorito. Além de carro, foram para lá de ônibus, navio e avião. “A ‘dona’ Leni adorava. Aquele aspecto europeu, linda, limpa, na beira do rio da Prata. E eu também me sentia muito bem, porque sempre tem gente de paletó e gravata por lá, me sentia em casa”, conta, sem evitar uma risada.
Em meio à saudade da esposa, que faleceu em 2014, Santos segue colecionando viagens e memórias, com os filhos, netos, amigos e sua melhor lembrança. “Para onde eu vou, a ‘dona’ Leni continua comigo.”