Foram apenas 20 minutos, mas que ganharam uma proporção sem escalas. Vinte minutos que viraram quase nove dias sem energia elétrica. Que derrubaram dois hectares de araucárias plantadas há 70 anos e mais de 350 hectares de eucaliptos. Que consumiram R$ 1 mil em gasolina para tocar um gerador e manter fresco o leite de 17 vacas. Que gastaram 21 velas e que mataram um leitão. Esses exemplos em números são realidades de diferentes famílias do interior de Venâncio Aires, também atingidas pelo temporal do dia 16 e que ‘varreu’ o município de uma ponta a outra. A tempestade passou, mas os prejuízos ficaram e, 10 dias depois, a Folha do Mate traz os relatos de quem ainda tenta assimilar o que aconteceu.
“A gente perde até a dignidade”
Ao meio-dia de quarta-feira, 24, o Estado informou que não havia mais pontos sem energia elétrica no Rio Grande do Sul na área de concessão da RGE. Mas o comunicado oficial não se confirmou na prática e, foi só a informação vir a público, que a reportagem da Folha do Mate e Terra FM começou a receber informações de moradores de localidades como Linha Isabel, Linha Maria Madalena, Linha 6º Regimento, Palmital, Centro Linha Brasil e até mesmo de Vila Mariante, na outra ponta do território venâncio-airense, de que o problema continuava.

A situação mais grave vinha da região serrana, entre 6º Regimento e Palmital, a mais de 30 quilômetros do Centro da cidade. Por lá, até o fim da tarde de quinta, 25, quase nove dias depois do temporal da noite do dia 16, cerca de 20 famílias seguiam à espera do restabelecimento da luz. Os primeiros detalhes vieram pessoalmente com Ivone Sackser, 60 anos, de 6º Regimento, que procurou o jornal depois de, inclusive, ligar para a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). “Eles me disseram que não era possível, porque para eles constava que Venâncio tinha luz.”

Na quinta à tarde, a reportagem percorreu algumas das localidades e foi à casa de Ivone, onde ela mora com o marido, Nilson Vogel, 55 anos, o filho Djonatan, 18, e uma irmã, Maria Loni, 73. As janelas e as portas da residência estavam todas abertas, captando o máximo de luz natural para iluminar os cômodos. A água do chimarrão foi buscada a balde, porque sem energia não é possível bombear da caixa. Sobre a mesa, ovos e frutas, à espera de luz para ligar o forninho e voltar a preparar bolos e cucas. Para iluminar as oito noites, 21 velas já tinham sido consumidas. “A gente não consegue se alimentar direito, não consegue se lavar direito. Precisamos colocar comida fora. A gente perde até a dignidade numa situação dessas”, lamentou Ivone, ao falar das dificuldades e improvisos depois de quase nove dias sem energia elétrica. Como muitos moradores da região serrana e acostumados a eventuais quedas de luz, eles têm gerador e, se não fosse o equipamento, os prejuízos seriam ainda maiores. São cinco freezers e duas geladeiras para estocar alimentos, a maior parte oriunda da propriedade, já que no supermercado só se vai para comprar produtos de limpeza, farinha e açúcar. “Infelizmente, um freezer foi fora, com uma carne de primeira.”
Para manter os outros refrigeradores, o gerador era ligado três vezes por dia, três horas cada, e já tinha consumido 150 litros de gasolina. “Perdi a conta de quantas vezes ligamos para a RGE. Fomos pessoalmente lá e nada. Eles vieram, mexeram, mas continuamos sem luz. Se não voltar logo, não sei como vai ser. A gente fica nervoso, é um desgaste emocional muito grande.”
Felizmente, às 17h30min da quinta, a energia foi restabelecida na localidade. Com isso, é possível que a família consiga, então, reunir outros parentes para comemorar os 73 anos de Maria Loni (completados dia 23), como estava previsto para este domingo, 28. Mas terão de comprar novamente o sorvete, porque os seis litros que estavam em casa para o aniversário, estragaram.

Banho de bacia e carne na banha
Os dias sem luz obrigaram as famílias a improvisarem, inclusive adotando práticas antigas. Eva Malvina dos Santos Pauli, 61 anos, e o marido, Celio Pauli, 67, também são moradores de 6º Regimento há quase 30 anos. “Uma vez ficou três dias sem luz, mas isso aqui é demais. Já levamos comida num sobrinho, que mora na cidade, mas um freezer foi todo fora. Aipim, pão, ovo, leite e carne, tudo foi fora”, lamentou a aposentada.
Na tarde da quinta-feira, um freezer ainda seguia ‘se mantendo’, mas a carne também já estava amolecendo. “A gente frita e coloca na banha, igual se fazia antigamente. Para tomar banho, é de bacia, pegando água da chuva.”

Retorno da luz
• Na tarde de quinta, 25, a reportagem encontrou uma equipe da Conecta trabalhando em uma estrada secundária de Linha Madalena, onde muitos moradores seguiam sem luz. “Só vamos sair daqui quando terminar o serviço”, comentou um dos funcionários.
• No fim da tarde, começaram a chegar informações para a Folha do Mate e Terra FM relatando sobre o retorno da luz, inclusive de 6º Regimento. No entanto, ainda na manhã de sexta, 26, chegaram comentários sobre falta de energia na região de Centro Linha Brasil.
Em Linha Palmital, o dilema com a produção leiteira
Logo depois de 6º Regimento, em direção à Linha Duvidosa, também seguiam os relatos de falta de luz na tarde de quinta. Em Linha Palmital, Édson e Isabel Wolschick, 53 e 51 anos, são produtores de leite e, se não fosse um gerador no galpão para tocar a ordenha e manter o resfriamento do tanque, o leite das 17 vacas estaria condenado. Toda madrugada, Édson precisava ligar o gerador. O casal também tem um equipamento em casa e, graças a ele, a família conseguiu manter a carne dos freezers. “Estamos nos virando como dá, mas está bem complicado. E não é por falta de pedidos para a RGE. Se continuar mais dias assim ou se repetir esse problema, acho que seremos obrigados a desistir da produção leiteira”, desabafou Isabel.
Indignada com a demora, a agricultora revela que, anos atrás, já processaram a RGE. “Na época ganhamos o valor que tínhamos perdido no leite. Mas não quero que isso se repita.” Isabel estava sozinha em casa quando recebeu a reportagem, porque o marido tinha levado o trator para ajudar funcionários da Conecta, que apareceram naquela tarde. “Ele foi ajudar a entrar nos acessos e puxar os postes. Mas se não voltar a luz hoje, ele ainda vai precisar ir buscar combustível para o gerador.” Em oito dias, o casal já tinha gasto R$ 1 mil reais em gasolina para tocar o gerador que conservou o leite.

“Esse mato de araucária era meu orgulho”
Além dos prejuízos devido à falta de energia elétrica, o interior de Venâncio Aires ainda contabiliza as perdas em estradas, lavouras, casas, galpões, estufas, estrabarias, aviários e pocilgas. De acordo com levantamento da Emater nesta semana, foram mais de R$ 4,4 milhões em prejuízo financeiro.

Mas a impressão que dá, olhando para o que ficou e conversando com as pessoas, é de que os danos continuarão aparecendo por um bom tempo. Um dos casos mais impressionantes aconteceu em Linha Maria Madalena, na propriedade da família Kreibich: dezenas de araucárias caíram em cima de um chiqueirão onde estavam 321 leitões. “Só um morreu”, relatou Norma, 78 anos.
Por lá, foram ‘apenas’ três dias sem energia elétrica, mas na tarde de quinta-feira o trabalho de limpeza no terreno seguia, bem como de reconstrução do telhado de um galpão próximo da pocilga destruída. Ainda incrédulo com o que os olhos testemunharam na última semana, Ornelio Kreibich, 81 anos, não escondeu a emoção. “Esse mato era meu orgulho e agora virou uma grande decepção”, disse, olhando para a encosta do morro que virou uma grande clareira. Eram 2,5 hectares de araucárias, plantadas há mais de 70 anos pelo avô dele, Gustavo. A força do vento do dia 16 arrancou praticamente todas as árvores, que tombaram sobre o chiqueiro. Um dos silos de ração dos animais também entortou, mas está coberto pelo seguro. Quanto à pocilga, o casal de idosos não tem ideia do que vai gastar, mas pretende construir uma nova estrutura. “Estamos nisso há mais de 20 anos e a gente gosta, ainda tem vontade de trabalhar”, afirmou Norma.

A santinha ficou de pé e a casa também
Na propriedade dos Kreibich, faltou pouco para uma tragédia. Isso porque a casa onde moram Gilnei, 57 anos, e Marli, 53, filho e nora de Ornelio, também poderia ter sido atingida pelas araucárias. Mas, aquela parte específica do mato, foi ‘preservada’ pelo temporal.
Devota de Nossa Senhora Aparecida, Marli, 53 anos, mantém uma imagem da santa a poucos metros da casa. “De manhã, quando saímos, tinha um galho em cima dela. Quebrou a grutinha, mas ela estava de pé. Foi Nossa Senhora que protegeu minha casa.”
Tocos de eucalipto
De acordo com o relatório da Emater, as maiores perdas financeiras na agricultura foram em matas de eucalipto – 357 hectares atingidos e R$ 1,6 milhão de prejuízo. A maior parte dessa destruição está nas encostas da região serrana.
Ao longo de aproximadamente três quilômetros da ERS-422, entre Linha Madalena e Vila Deodoro, são visíveis centenas de troncos quebrados ou ‘dobrados igual borracha’ às margens da estrada. Árvores que caíram sobre fios, postes e até uma parada de ônibus.
Mas é em Linha 6º Regimento o cenário mais impactante. Em muitas partes de encostas, mesmo ao longe, a vista alcança grandes clareiras. Olhando de longe, é como se aquelas árvores imensas, que chegam a mais de 30 metros de altura, tivessem sido ceifadas uniformemente, ou quebradas ao meio como frágeis gravetos. Das que resistiram, muitas estão curvadas.

Impressões da repórter
Na tarde de quinta, 25, quando ainda havia famílias sem energia elétrica no interior de Venâncio Aires, eu e o colega Roni Müller percorremos quase 70 quilômetros. Achávamos que a maior parte dos estragos já tivesse sido relatada, mas percebemos que, neste município de mais de 770 quilômetros quadrados, muita coisa demora a aparecer. As famílias nos recebiam sem jeito, se desculpando para o caso de não estarem cheirando bem após o banho de bacia. Mas muito agradecidas pelo interesse da imprensa em relatar as dificuldades, em mostrar ‘as coisas ruins’, mas necessárias. Talvez esperassem pela visita da RGE ou de um órgão público, mas encontraram na reportagem uma forma de desabafar, de dividir a angústia e reforçar o inconformismo.
Dos muitos relatos ouvidos alguns impressionaram pelo improvável. Entre eles, o fato de, em pleno século 21, alguém ficar praticamente incomunicável. Na casa de Ivone Sackser e Nilson Vogel, em Linha 6º Regimento, como o gerador foi destinado aos freezers e geladeiras, não foi possível ouvir rádio ou assistir TV por mais de oito dias. Então o que manteve a família informada foi o bom e velho impresso. Eles são assinantes da Folha do Mate e, pelo jornal, acompanharam os avanços (e atrasos) sobre a falta de energia.
A notícia do restabelecimento da luz é importante, mas o alívio talvez ainda seja pequeno perto das dificuldades passadas, dos prejuízos financeiros e do que vai demorar para ser recuperado, depois desse temporal cujas marcas já duram muito mais do que 20 minutos.