Dois casais venezuelanos desembarcaram em Venâncio Aires. Ao chegarem, encontraram dois apartamentos com quarto, cozinha, sala e banheiro equipados e prontos para morar. A recepção dos brasileiros emocionou os dois casais que viviam, nos últimos meses, situação de extremo desconforto.
Fugitivas da fome, do desemprego, da violência e da ditadura do presidente Nicolás Maduro, as duas famílias encontraram em Venâncio Aires um bom lugar para recomeçar a vida e construir um novo futuro. Os refugiados aos poucos se adaptam à realidade local – há dois meses residem em um prédio que fica bem no Centro da cidade. Os apartamentos também ficam praticamente um de frente para o outro: um é o 12 e o outro é o 14.
Diferente do que aconteceu em Venâncio Aires em anos anteriores, quando o apoio era totalmente governamental, desta vez a ação é capitaneada por uma igreja evangélica que dá condições iniciais de uma vida bem mais digna do que levavam no país vizinho. A rede de ajuda – articulada pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias no Brasil, conhecidos como – surpreende pela organização e articulação entre religião, comunidade e venezuelanos. O Rotary Club Venâncio Aires Chimarrão doou móveis, agasalhos e eletrodomésticos.
“Tudo o que passamos nos enche de fé e de força para seguirmos adiante. Agora estamos nos preparando para crescer e ser exemplo de que se pode, sim, alcançar sonhos na vida.”
ENDER CACÓN – Imigrante
VENEZUELANOS JÁ ESTÃO TRABALHANDO

Apesar de as duas famílias terem vindo para Venâncio Aires em momentos diferentes, todos já encontraram trabalho. Ender, 37, e Yesenia Cacón, 41, eram ligados à Orquestra Sinfônica da Venezuela. Ela era uma das executivas da organização, enquanto ele era o responsável pela infraestrutura e apoio. Quando o governo tomou a organização, rumaram para a Colômbia. Paralelo a isso, Ender cursou Gastronomia, com o objetivo de empreender.
Por cinco anos, o casal manteve, na Colômbia, um restaurante de comidas típicas colombianas e venezuelanas. No entanto, chegando em Venâncio, não exitaram e abraçaram todas as oportunidades. Aqui, Yesenia atua como cozinheira e auxiliar de limpeza em uma escola de turno oposto. Já ele está no contrato de experiência em uma tabacaleira.
Na família Dun, Rafael, 43, e Ginette, 51, pais da jovem Rebeca, 16, também estão atuando no mercado de trabalho. Ele, que é era motorista profissional, atua no momento em uma oficina mecânica especializada em pintura e chapeação. “Mas ainda quero voltar a atuar no caminhão. No momento estou me preparando para conseguir validar minha carteira de motorista no Brasil”, argumenta ele. Parte da documentação já foi obtida para encaminhar o processo junto ao Detran-RS.
Ginette, apesar de ser licenciada em Administração, atua no momento como auxiliar de limpeza em uma escola de educação infantil. Já a filha estuda no segundo ano do ensino médio na Escola Monte das Tabocas. “Encontramos muita comida e carinho aqui. Amigos que estão em outros lugares ficam impressionados quando contamos como as coisas estão aqui”, descreve Ginette.
Ao longo da entrevista, os integrantes das duas famílias – que estavam reunidos na sala de um dos apartamentos – se emocionavam ao lembrar das dificuldades vividas antes de atravessarem a fronteira, principalmente porque a maioria de suas famílias permanece vivendo naquele que foi, classificado por eles, como um “verdadeiro caos social”. “Evito contatar meus irmãos que são professores, pois lá nem todo dia eles conseguem comer. A insegurança é muito grande”, lamenta Ender Cacón.
Foi também no Brasil que os irmãos Ender e Ginette voltaram a se ver depois de três anos em países diferentes. Mais do que se adaptar logo ao convívio local, os dois casais querem aprender com mais afinco o português, porque hoje é o ‘portunhol’ que prevalece. Eles também querem logo ganhar autonomia financeira, pois nesses primeiros meses é a própria igreja quem banca os aluguéis. Outra preocupação é juntar dinheiro para mandar aos parentes que ficaram no país vizinho.
Para conseguirem juntar fundos para financiar a viagem para o Brasil, foram vendidos os móveis das residências e carros. Já as casas, em Barquisimeto, foram apenas trancadas, porque sofreram uma desvalorização descomunal desde que a crise econômica se agravou. Barquisimeto é a capital e a cidade mais populosa do estado de Lara, no Oeste da Venezuela. São mais de 1,2 milhão de habitantes.
FRIO E GASTRONOMIA
Um dos aspectos que mais difere Venâncio Aires de Barquisimeto é o frio. Enquanto que na cidade natal dos venezuelanos a temperatura fica amena quase que o ano inteiro, aqui eles já foram surpreendidos com temperaturas de zero grau e com sensação térmica negativa. No dia da entrevista, por exemplo, a temperatura estava em 17°C e a maioria estava de luvas.
O chimarrão não foi bem aceito entre as famílias pelo gosto amargo da erva-mate. Já para o prato típico de Venâncio, a galinhada, são só elogios. Eles adoraram a composição e querem aprender a prepará-la.
Além disso, para economizar, aqui aprenderam a fazer pão. Mas, o que mais faz falta da cultura nativa é a arepa, um prato de massa de pão feito com milho moído ou com farinha de milho pré-cozida. É um dos pratos tradicionais e emblemáticos da Venezuela e da Colômbia. A arepa, de origem indígena, é uma herança comum compartilhada por essas nações e é consumida, geralmente, nas três principais refeições do dia (café da manhã, almoço e janta).
“Estamos felizes, tranquilos e, a cada dia, construindo uma nova vida e nosso futuro neste país que nos acolhe.”
RAFAEL DUM – Imigrante
FAMÍLIAS ATRAVESSAM FRONTEIRA PARA ESCAPAR DA CRISE
A principal forma de ingresso no Brasil é a partir da fronteira norte e, neste caso, não foi diferente para as duas famílias que chegaram a Venâncio Aires. No estado de Roraima, os refugiados foram vacinados e todos receberam CPF, RG, cartão do Sistema Único de Saúde (SUS) e carteira de trabalho. A documentação também foi estendida à jovem Rebeca, de 16 anos, para que ela pudesse ser matriculada em uma escola. Na sequência, eles foram encaminhados para abrigos, onde aguardam por transporte.
O que essas famílias viveram é uma autêntica odisseia. O trajeto, feito de forma improvisada, nos primeiros trechos, se recorre a caronas ou a ônibus com passagens mais baratas. Contudo, ao chegarem perto do limite com Roraima, os imigrantes fazem o restante a pé, pois os motoristas hesitam em cruzar para o lado brasileiro. Mas já foi pior. Entre fevereiro e maio, quando a fronteira do lado venezuelano esteve fechada por determinação do governo Maduro, muitas famílias entraram no Brasil pela mata. Para tanto, recorriam aos compatriotas indígenas, que conhecem melhor a região.
Até agora, 16 mil venezuelanos já foram levados para outros estados, principalmente Amazonas, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul. Pelos cálculos do órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) para refugiados, a quantidade de venezuelanos que deixaram o país chegou a 4 milhões. Todos os dias, cerca de 600 venezuelanos buscam exílio no Brasil. Trata-se do maior fluxo migratório, por meio de fronteiras terrestres, já recebido pelo país.
SALÁRIO MÍNIMO
A crise na Venezuela se agravou ainda mais quando a economia encolheu pela metade desde a eleição de Nicolás Maduro há seis anos e não há limites para a hiperinflação – 130.060% em 2018, segundo o Banco Central do país, mas 1.000.000%, conforme o Fundo Monetário Internacional (FMI). O aprofundamento do caos do país teve reflexos diretos no comportamento de seus refugiados: se o dinheiro vira fumaça, o objetivo passou a ser a subsistência. O salário mínimo por lá é de 8 dólares mensais (o equivalente a R$ 32). É o suficiente para comprar um quilo de frango ou um pedaço de queijo. Mas não os dois.
BILIONÁRIO AJUDA
As duas famílias que foram recebidas em Venâncio Aires citam como essencial para o bom acolhimento dos venezuelanos no Brasil o apoio do empresário Carlos Wizard Martins. Ele é dono de uma fortuna avaliada em R$ 2,1 bilhões. De formação mórmon, Carlos Wizard Martins se tornou bilionário após vender a rede de escolas de idiomas Wizard, em 2013. No ano passado, ele se mudou com a mulher de São Paulo para Boa Vista (RR), com a missão de ajudar os refugiados venezuelanos a ter a chance de vida nova em cidades brasileiras.