Nos dias que a lua não fosse suficiente para iluminar os caminhos, os lampiões seriam acesos ao escurecer e apagados, no inverno, às 23h. No verão, poderiam ficar acesos até a meia-noite, a não ser que a lua brilhasse antes da hora… No fim do século XIX, essas eram as regras básicas que deveriam ser obedecidas por um rapazote de 14 anos, responsável por percorrer, todos os dias, a rua principal de uma vila recém-emancipada. Essa é a história de Antônio José Fagundes, ou apenas Nico, considerado o primeiro acendedor de lampiões de Venâncio Aires. Mas também é a história de uma vila ainda em formação e seu cenário de mais de 125 anos atrás.
Dos Fagundes de um certo faxinal ao primeiro emprego na vila
Foi no dia de Santo Antônio, um ano antes de Faxinal dos Fagundes virar a Freguesia de São Sebastião, que mais um menino com o nome do santo católico veio ao mundo. Naquele 13 de junho de 1883, na localidade que alguns chamavam de ‘Serra dos Bois’ e que o tempo e a variação da pronúncia efetivaram como Cerro dos Bois, nasceu Antônio José Fagundes, um dos caçulas de Martimiano Fagundes e Virgínia Rodrigues Chaves.
O sobrenome dele e o local de nascimento tinham total relação com a região que então pertencia a Santo Amaro. Antônio é descendente de Francisco Machado Fagundes da Silveira, o primeiro a receber uma concessão de sesmaria, em 1762, marcando o início do povoamento do futuro município de Venâncio Aires. É por causa do sesmeiro e dos nove filhos que o território ficou conhecido como Faxinal dos Fagundes.
Aos 7 anos, Antônio, que já era chamado de Nico, ficou órfão da mãe. Isso foi em 1890, quando na região já se ‘sopravam’ conversas sobre emancipação, o que se confirmaria alguns meses depois, entre abril e maio de 1891. Crescendo em meio a essa mudança histórica que marcou o início da nova ‘vila’, Nico sai dos Cerro dos Bois e vai para mais perto do centro, onde a urbanização já era maior (atual região do bairro Coronel Brito). O jovem foi morar com alguém que refletiria novamente uma figura materna, o que encontrou em Maria Antônia, uma de suas irmãs mais velhas, e que era casada com Izidoro José Machado, concessionário dos primeiros serviços de iluminação pública do mais novo município.
O emprego
Foi através da função do cunhado, que Nico começou a trabalhar. Isso aconteceu em 1897, ano em que o tenente-coronel Narciso Mariante de Campos foi eleito intendente. O jovem tinha 14 anos, mas altura e maturidade suficientes para receber uma grande responsabilidade na época: garantir a iluminação noturna na rua principal da vila.
“Ele saía com a querosene, fósforo e uma escadinha para alcançar o poste”, relata Jacy de Medeiros Fagundes. Com quase 99 anos (serão completados no próximo 8 de março, Dia Internacional da Mulher), ela é filha de Nico e ouviu muitas histórias do pai dos tempos da virada de século.
Jacy conta que Nico percorria a rua principal de Venâncio, futura Osvaldo Aranha, todo início e fim de noite, para acender e apagar, com horários marcados, os lampiões. Cada quadra tinha apenas três luminárias. Eram tempos onde a cidade praticamente contava com meia dúzia de casas e meia dúzia de ruas abertas, cenário da então vila ainda em formação ao redor da igreja.
A praça, quando Nico era o acendedor de lampiões, chamava atenção porque durante 20 anos contou com dois templos. De acordo com o livro ‘São Sebastião Mártir – a fé fazendo história’, de 2013, embora a primeira igreja matriz já tivesse sido erguida em 1894, a capela, construída em 1881 só foi demolida em 1913. “Vendo a quadra atual, a capela ficava mais para os fundos, à esquerda, próximo da esquina com a Tiradentes. Já a igreja estava mais ao centro do terreno, próxima onde hoje é a rua Jacob Becker”, explicou a historiadora Angelita da Rosa. Vale lembrar que o templo maior e que virou o cartão-postal da cidade, só começou a ser construído em 1929.
Outro detalhe daquele fim de século é que esse terreno onde foram erguidos todos os templos era conhecido como praça Duque de Caxias.
Contrato em réis
- A Intendência Municipal e Izidoro Machado firmaram um contrato em 30 de abril de 1898. As informações a seguir constam no livro ‘Abrindo o baú de memórias’, de 2004, que buscou documentos do Livro I de Contratos e Fianças da Intendência Municipal de Venâncio Aires.
- De acordo com o contrato, ficaram estabelecidas as seguintes condições: o concessionário obrigava-se a colocar, na rua principal, 20 lampiões de iluminação pública e fornecer querosene, vidros, pavios e tudo o mais que fosse necessário para executar o serviço. A Intendência pagaria mensalmente a quantia de 150 mil réis ao concessionário para realizar o serviço contratado.
- Os lampiões, nos dias que não houvesse luar, seriam acesos ao escurecer e apagados, no inverno, às 23h e, no verão, à meia-noite, salvo se a lua brilhasse antes dessa hora. De cada noite que, por negligência, o contratante deixasse de acender os lampiões ou se os apagasse antes das horas aprazadas, pagaria, a título de multa, 5 mil réis.
- Na eventualidade de arrepender-se do acordo, que deveria durar a partir da data de assinatura do contrato até 31 de dezembro daquele ano, o contratante pagaria mensalmente uma multa de 150 mil réis. O concessionário apresentava ao cidadão Emílio Selbach como fiador de todas as cláusulas estipuladas pelo contrato.
- Em 1899, Izidoro Machado responsabilizou-se pela iluminação de 22 lampiões. Além das cláusulas anteriores, ele comprometia-se ainda, nas noites de baile ou discussões públicas, manter acesos os lampiões até a hora que terminassem os eventos, recebendo uma contrapartida extra.
- Depois de 1901, a Intendência Municipal fechou contrato com o cidadão Manuel Leopoldo Ribeiro, que ficou responsável pela iluminação pública durante todo o ano de 1902. Os lampiões continuaram a iluminar a vila nos anos seguintes e só foram retirados após instalação da usina de força e luz na sede do município (veja abaixo).
Nunca diga “Adeus, Venâncio!”
Acender lampiões não foi o único trabalho de Antônio José Fagundes na adolescência. Conforme a filha Jacy, quando Nico tinha 17 anos, o cunhado o contratou para levar a chamada ‘diligência’, uma carroça puxadas por burros, até o porto de Mariante. Nela, o jovem levava correspondências, mercadorias e pessoas que deveriam embarcar no vapor para ir a Porto Alegre. Da mesma forma, à beira do rio Taquari, esperava o vapor chegar e trazer encomendas, cartas e passageiros.
Ele trabalhou para o cunhado até 1903, quando houve um desentendimento entre os dois e o jovem, já com 20 anos, decidiu sair da casa dos Machado. Chateado, conta-se que Nico teria exclamado alto e bom som “Adeus, Venâncio!”, antes de seguir rumo a Rio Pardo, onde ele sabia que também moravam vários Fagundes.
É por lá que conheceu Elisa de Medeiros (1893-1973), cujos pais tinham uma atafona (moinho) na localidade de João Rodrigues. O casamento ocorreu em 1914 e montaram sua própria casa de comércio. Ainda em Rio Pardo, nascem os primeiros quatro filhos: João Paulo, Idalino, Jacy e Antônia. Em 1926, devido a problemas de saúde com o primogênito, Nico e Elisa decidem ir morar em Santa Cruz do Sul. Até 1930, a mudança de ares fez bem para a criança, mas para Nico estava difícil conseguir trabalho. Foi aí que aconteceu a volta para Venâncio Aires.
No início da década de 1930, diversos agricultores do município já vinham apostando e colhendo bons resultados com o tabaco (que até hoje é o principal carro-chefe da agricultura local). “Papai tinha alguns amigos em Venâncio, que o convidaram para plantar fumo em sociedade”, relata Jacy. A família, então, vai morar em uma área que hoje fica próxima da escola Wolfram Metzler, no bairro Bela Vista. Nos anos seguintes, nasceram mais duas filhas: Hilda e Olinda.
Feliz como agricultor e com a vida ‘andando’, Jacy conta que o pai passou a debochar da própria atitude, quando ainda era um jovem de 20 anos e decidiu ir embora. “Ele dizia para tudo mundo: Nunca digam ‘adeus, Venâncio’, porque sempre se volta para essa terra.”
E assim foi. Nico, que nasceu quando aqui ainda era Faxinal dos Fagundes, faleceu aos 78 anos, em 1961. Ele está enterrado no cemitério de Linha Ponte Queimada, onde muitos descendentes dos Fagundes também repousam para sempre em solo venâncio-airense.
Outro Fagundes
Das quatro filhas moças de Nico, Jacy não precisou trocar de sobrenome quando casada. Isso porque ela casou com Romário da Cruz Fagundes (1917-2003), em 1944. Romário, natural de Linha Ponte Queimada, era um primo em quarto grau de Jacy. Na dúvida se poderia seguir adiante com o namoro devido ao parentesco, a moça resolveu consultar o vigário de Venâncio Aires. “Pode casar. Em último caso, a gente pede autorização do bispo”, foi a resposta de Cônego Albino Juchem.
No fim da década de 1940, o casal adquiriu o terreno da esquina das ruas Tiradentes com Barão do Triunfo, onde montaram uma casa comercial. Do balcão do estabelecimento, Jacy viu o crescimento da urbanização de Venâncio nas décadas seguintes, com pavimentação, calçamento, novos prédios e o avanço da luz elétrica, algo impensável quando seu pai era acendedor de lampiões.
Jacy e Romário tiveram dois filhos: Rogério, hoje com 76 anos, e João Aurélio, de 74.
Evolução
Durante seus primeiros 25 anos de história como município, Venâncio Aires foi iluminada pelo amarelado refletido pelo lampiões. Foi em 1916 que começou, de fato, a iluminação elétrica, quando a Intendência Municipal firmou contrato com Jorge Schuck. A história desse momento também está relatada no livro ‘Abrindo o baú de memórias’.
Schuck, que era um industrialista, construiu uma usina de luz e força na rua Júlio de Castilhos esquina com a Barão do Triunfo, onde a energia era gerada. A geração e distribuição coube a Schuck até 1940, quando a Prefeitura decidiu, ela própria, instalar uma nova usina para dar conta da indústria e comércio que já cresciam.
Até 1956, o fornecimento foi feito pela Usina Elétrica Municipal, que tinha cinco geradores termelétricos. A usina ficava na rua Tiradentes, esquina com a Sete de Setembro, e que nos anos seguintes, também foi endereço das concessionárias CEEE, AES Sul e RGE.
Nessa linha do tempo sobre a iluminação pública, é preciso destacar uma nova etapa que começou no fim de 2021: a instalação de LED. Aos poucos, os moradores têm se acostumado com a luz branca nas noites na cidade, em substituição à cor amarelada das lâmpadas de vapor de sódio.
Segundo o secretário de Infraestrutura e Serviços Públicos (Sisp), Sid Ferreira, já foram trocadas lâmpadas em 1,2 mil de 11,5 mil pontos, nos trevos de acesso à cidade, nas ruas centrais e em Vila Mariante. “A sequência do trabalho inclui o bairro Coronel Brito e as sedes dos distritos de Teresinha e Santa Emília. Até o fim do ano o objetivo é trocar 4,5 mil pontos”, destacou Ferreira.
Marcas na história
Como relatado no início, Antônio José Fagundes, o Nico, descende do primeiro sesmeiro de Venâncio Aires. Já era, com isso, um pedacinho da história do município. Naturalmente que, quando tinha seus 14 anos e foi um dos primeiros a acender lampiões na pequena vila, não imaginava que faria parte do contexto histórico da cidade.
Mas, além dele, tem um outro Fagundes que também marcou a história local: João Aurélio, filho de Jacy e neto de Nico, foi quem criou o brasão do município, em 1963, quando era aluno do Aparecida. Hoje morando em Santa Cruz do Sul, toda vez que vem visitar a mãe, passa pelo Acesso Leopoldina, uma das primeiras vias a receber o LED.
O local, na década de 1950, era só um mato fechado, cheio de araçá, que João percorria para ir à casa de um tio, em Linha Estrela. “Várias vezes eu e meu irmão nos perdíamos, daí eu ficava pensando que seria bom, no futuro, ter um equipamento comunicador entre as pessoas e luz naquele lugar. E a tecnologia está aí”, comentou o auditor da Receita Federal aposentado, que ainda vai levar a mãe, quase centenária, para ver a luz do LED à noite. Jacy verá uma nova iluminação, mas com certeza lembrará do pai, que de lampião em lampião, também já foi responsável por clarear os caminhos nas (ainda pacatas?) noites venâncio-airenses.