Nos tempos em que Venâncio Aires usava tamancos de madeira

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Essa história começa muito antes da emancipação de Venâncio Aires. Começa antes da chegada de imigrantes. Começa antes mesmo de Mariante virar nome de Estância. Essa história começa há mais de 200 anos, quando o território que hoje pertence à Capital do Chimarrão estava dividido entre apenas nove pessoas, depois de terem recebido concessões de terras do reino de Portugal.

Nesse seleto grupo de sesmeiros, apenas um não tinha origem portuguesa. Era um inglês, que não se sabe exatamente como veio parar por essas bandas, mas cujo trabalho com tamancos de madeira rendeu um nome histórico e que até hoje gera curiosidade sobre onde ficava um certo faxinal (campo coberto de mato curto). A Folha do Mate buscou algumas pistas e encontrou também outras histórias.

Uma casa que resiste ao tempo

É numa propriedade rural de Vila Estância Nova que segue de pé uma casa secular. Em estilo enxaimel, em meio às tradicionais vigas de madeira transversais, a parede foi erguida com pedras de areia. Mas como num quebra-cabeça, as peças apenas foram montadas, sem cimento ou barro entre elas, ou seja, estão simplesmente empilhadas umas nas outras. É para este ponto que convergem alguns dos relatos na região sobre onde teria morado José Hollbrook, o tal tamanqueiro inglês que deu origem ao ‘Faxinal dos Tamancos’.

A casa está sobre as terras do atual secretário de Desenvolvimento Rural de Venâncio Aires, Gilberto dos Santos, que as comprou há cerca de 15 anos. Santos disse que não há nenhuma informação mais antiga na escritura sobre donos passados e ele também desconhece a verdadeira origem da residência. “Só sei que pelo tipo de madeira e material usado, isso é coisa muita antiga mesmo. É surpreendente estar de pé ainda”, avaliou.

Quem arrisca uma idade para a casa é Luiz Carlos Martins, 66 anos. O motorista aposentado mora em General Câmara, mas nasceu na residência que o bisavô comprou no fim do século XIX. “Vixi, tem mais de 200 anos, com certeza”, afirmou. Ele é bisneto de Pedro Martins, que na região era conhecido como Pedro Calafate (nome dado aos operários que vedavam as juntas dos barcos).

Luiz Martins conta ainda que sempre foi um apaixonado pela casa e pelas histórias que ouviu do avô, Claudionor. “Era ele que me falava que ali morou o tal tamanqueiro do faxinal.” Como o gosto por ‘coisas antigas’ vem desde a infância e, quando foi morar em General Câmara, decidiu levar parte da história junto. Segundo Martins, na sua casa estão itens que teriam sido usados para confecção de sapatos de pau, como um traçador (serrote) e um rebolo para lixar as peças.

Pesquisas

A casa onde teria morado o inglês também é referenciada pela professora aposentada Cleide da Rosa Wilges, 78 anos. Quando ela era menina, no fim da década de 1940, ainda conviveu com o avô materno José Back (1888-1950). Back foi, na década de 1920, o que chamavam de subprefeito em Estância Mariante. “Ele contava que era lá, na terra onde está a casa, que morava um tamanqueiro”, conta Cleide.

O marido dela, Libório Wilges, 74 anos, quando soube dessa possibilidade, tratou de iniciar uma pesquisa. “Fui em cartório, tentei procurar alguma referência na matrícula da terra, mas o nome Hollbrook não aparece. E lá me falaram que isso é normal, considerando que faz mais de 150 anos e a grande maioria das coisas nem era registrada”, explicou o aposentado.

O interesse de Wilges pela história da localidade não é de agora. Tem um vasto conhecimento sobre origens, nomes, pessoas e características da região. Boa parte desse trabalho foi ‘encorpado’ na década de 1990, quando ele foi uma das lideranças que buscou a manutenção do nome ‘Estância Mariante’ para a localidade.

Na casa dos Wilges, em Linha Mangueirão, há pastas repletas de cópias de documentos, mapas e fotografias. Entre a coleção, manuscritos do padre Walter Giehl, que fez uma pesquisa sobre as dioceses na década de 1970 e acabou resgatando muito das origens de Venâncio Aires. “Muito do que ele pesquisou, a Hilda Hübner Flores [professora e historiadora venâncio-airense] usou como fonte para seus livros”, comentou Wilges.
Nos escritos de Walter Giehl também aparece uma referência ao inglês: “Lázaro de Souza [o mesmo que deu origem ao nome Rincão de Souza], adquiriu de descendentes do casal Del Rey meia légua em quadro na região do Taquari, onde morava o inglês fabricante de tamancos.”

Libório e Cleide Wilges, moradores de Linha Mangueirão, pesquisaram sobre a história de Estância Mariante (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Registros

  • Considerando os dois séculos estipulados pelos moradores para a idade da residência em Estância Nova, voltamos a um período entre 1800 e 1820, ainda no Brasil Império. Do que existe de registro, foi neste período que sete sesmeiros receberam seus lotes de terra. Os nomes e datas a seguir estão no livro ‘Abrindo o baú de memórias’, de 2004.
  • Nos primeiros anos do século XIX, receberam sesmarias o capitão Manuel de Jesus Ferreira (1800), Francisco Antonio de Souza e Felisberto Fagundes (1814), José Antônio Ferreira (1815), Lázaro de Souza (1818), José Joaquim da Rosa (1819) e o inglês José Holbrook (sem data).
  • O nome do inglês desconhecido também aparece no Livro Tombo da Freguesia de Venâncio Aires, número 1, de 1914 a 1918: “A região desta freguesia era conhecida antigamente pelo nome de Faxinal do Tamanco, denominação que se deriva de um velho inglês que morava na atual Estância Mariante e fabricava tamancos.”
  • Mas antes do inglês e dos outros seis, Francisco Machado Fagundes da Silveira foi o primeiro a receber uma concessão de sesmaria, em 1762. É por causa dele e dos nove filhos que o território ficou conhecido como Faxinal dos Fagundes, o primeiro nome ‘oficial’ de Venâncio, quando ainda fazia parte do município de Rio Pardo.
  • ‘Dona Brígida’, a mesma que doou as terras para a construção da Igreja São Sebastião Mártir e é nome de rua e escola em Venâncio, é neta do primeiro sesmeiro. Além de Francisco Machado Fagundes da Silveira, ainda no século XVIII, José da Silva Lima recebeu uma sesmaria em 1798.
Sapatos ou tamancos de pau usados na Estância tinham uma faixa de couro. Modelos como esses ainda são fabricados em Westfália, no Vale do Taquari (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Uma fábrica e o som de passos barulhentos

Uma das moradoras mais antigas de Vila Estância Nova é Alcida Alicia Stein. Cida, como é conhecida, vai completar 95 anos em abril e tem na memória muitas histórias contadas pelo pai, Jacó Klein, que viveu até os 100 anos. “Tinha uma época que a pobreza e a fome era muita por aqui. A gente sabia de pessoas que chegavam a trocar terra por um pedaço de pão ou até um tamanco”, conta a agricultora aposentada.

Alcida Alicia Stein, aos 94 anos, conta sobre uma fábrica de tamancos na região (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Cida, que é neta de Amália e Jorge Klein (casal que também morou na tal residência por volta de 1880) relata outra história: de que na atual região da Estância São José havia uma fábrica de tamancos. “Era entre a Estância Nova e a São José que se dizia que era o faxinal. Tamanco de madeira era coisa comum, muita gente aprendeu a fazer depois. Eu usava para ir na escola.”

Salete e José Luis Gerhardt moram na propriedade onde está a residência centenária (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Calçar tamancos de madeira naquela região foi algo corriqueiro durante gerações, afinal os calçados protegiam os pés da chuva, do frio e das pedras na lida das lavouras. Ou se usava até em ambientes ‘incomuns’. “Meu pai usava direto dentro de casa. Era uma barulheira no assoalho, igual cavalo com ferradura no asfalto”, conta, entre risos, José Luis Gerhardt, 58 anos. O agricultor tem parceria agrícola com Gilberto dos Santos e mora na propriedade onde está a casa centenária.

Suposições

Do que foi registrado sobre José Hollbrook, não há muita coisa documentada, o que torna difícil a comprovação. Ainda assim, a historiadora Angelita da Rosa faz algumas suposições considerando o período pelo qual ele passou por Venâncio.

“Ele vai estar numa sesmaria que, segundo os relatos, foi concedida a ele depois que comprou terras. Nessa época, havia concessões de terras e as colônias particulares. Às vezes, a concessão era feita por uma pessoa e essa pessoa vendia lotes de terras”, explicou.

Sobre ele ser inglês, Angelita avalia que isso não significa que ele veio direto da Inglaterra. “A gente supõe que ele teria alguma relação com o governo português, porque veio parar na parte das sesmarias lusas. Possivelmente era dono de escravos e tinha dinheiro, caso contrário não teria conseguido a concessão de sesmarias [dadas a quem tinha condição de explorar a produção agrícola, por exemplo].”

Sobre o ofício de Hollbrook, a historiadora comenta que a fabricação de tamancos era muito comum naquela época, mas ele deve ter se notabilizado por, provavelmente, ter sido o primeiro. “Como é uma época muito inicial do povoamento ele deve ter sido o primeiro e ficou marcado com o nome. Mas são tudo suposições do ponto de vista histórico, não tem comprovação”, ponderou.

Da mesma forma, não há informações sobre o restante da vida de José Hollbrook. Teve família? Ficou pela região? Foi para outro lugar? Essa perguntas não encontraram respostas. Nos cemitérios do 9º Distrito de Venâncio, também não há indícios de algum túmulo com o nome do inglês.

Nomes

Do que está documentado, o território de Venâncio Aires teve, antes da emancipação, dois nomes oficiais: Faxinal dos Fagundes (1809-1884) e Freguesia de São Sebastião Mártir (1884-1891). Dessa forma, segundo historiadores, Faxinal dos Tamancos foi um apelido para Faxinal dos Fagundes, especialmente para a região que mais tarde seria conhecida como Estância Mariante.

Onde o sapato de pau é símbolo e dialeto oficial

O tamanco que já foi até um nome-referência para Venâncio há mais de 150 anos, ficou na história do município e talvez hoje seria um ‘achado’ encontrar alguém que ainda tenha um par em casa.

Tal procura é bem mais fácil não muito longe daqui, no Vale do Taquari, em um município com cerca de 3 mil habitantes, onde o sapato de pau está na história, mas também na cultura e no idioma: em Westfália o item é símbolo da cidade e um dialeto oficializado.

Lá, os primeiros sapatos de pau chegaram por volta de 1850, com os imigrantes alemães. Segundo Paloma Valandro, assessora de imprensa da Prefeitura de Westfália, as pessoas que usavam o sapato também falavam uma língua diferente de outros descendentes. Assim, o dialeto tornou-se conhecido como Plattdüütsch, chamado ‘sapato de pau’. “Foi cooficializado como dialeto de Westfália e, em 2019, foi lançado o primeiro dicionário”, destaca Paloma.

Ela também integra o Westfälische Tanzgruppe, fundado há 27 anos, quando Westfália ainda pertencia ao município de Teutônia. O grupo de danças folclóricas alemãs tem cerca de 60 integrantes, de crianças a idosos, e se caracteriza por se apresentar usando tamancos de madeira. Há, inclusive, uma pessoa específica para a fabricação: o senhor Hugo Pott, um dos únicos no Rio Grande do Sul que tem esse ofício.

Ainda conforme Paloma, o dialeto Plattdüütsch, apesar de ser originário do norte da Alemanha, é parecido com a língua holandesa, e alguns consideram mais parecido com o inglês. Inglês… tamanco de madeira… Se tem alguma relação ou é apenas coincidência, fato é que o início de uma história parecida também já foi ouvida por aqui.

Grupo de danças folclóricas alemãs de Westfália se apresenta usando sapatos de pau (Foto: Espaço Dream’s/Divulgação)


Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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