Prédio centenário: as histórias da casa número 585 da rua Osvaldo Aranha

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Em maio de 1955, Telmo de Azambuja Marder, um apaixonado pelo tradicionalismo gaúcho, ajudou a fundar o CTG Coronel Thomaz Pereira, o primeiro Centro de Tradições Gaúchas de Venâncio Aires. Foi na casa de Marder, na rua Osvaldo Aranha, número 585, que o grupo realizou as primeiras reuniões. Mas, além disso, esse endereço já vivenciou outras histórias que se confundem com a própria história do município. A residência de uma parteira e seus descendentes, um hospital improvisado e um comércio tradicional de tecidos ajudaram a formar esse cenário. Tudo começou em 1917 e, parte dessa trajetória centenária, a Folha do Mate tentou resgatar nesta reportagem.

A moradia de uma parteira

Em 1856, quando os primeiros Assmann cruzaram o Atlântico da Alemanha até o sul do Brasil, foram 16 semanas dentro de um navio. Aquela verdadeira epopeia, cheia de dificuldades, saiu de Hamburgo e chegou até Santa Cruz do Sul.

Foi lá que eles fizeram uma promessa, de sempre guardar e preservar a história da família. Parte dessa trajetória também passou por Venâncio Aires, onde um casal ergueu uma residência em 1917, na então chamada ‘rua principal’ ou ‘rua grande’. Sobre este casal, sabe-se apenas que eram Assmann e que a mulher era parteira, daquelas que seguiam de charrete até as localidades mais distantes para ajudar a trazer ao mundo bebês venâncio-airenses.

Foi na casa dela, onde a parte frontal era a residência e nos fundos foram erguidas seis peças unidas por um corredor, começaram a ser acolhidos doentes e, provavelmente, grávidas em trabalho de parto. “Minha vó contava que ali era um pequeno hospital”, comenta Vera Maria Assmann Marder, 65 anos. Vera é neta de Otília, que morou com a sogra, a tal parteira Assmann.

Os relatos de Otília Schmidt (1900-1986), que depois de casada adotou o sobrenome do marido, Carlos João Assmann, são a principal fonte sobre as origens da família em Venâncio. Para a neta Vera, que nasceu no número 585 da rua Osvaldo Aranha, em 1956, ela contou muitas histórias. E essa, de que na casa dos sogros funcionou, talvez, o que pode ser considerado o primeiro hospital de Venâncio Aires, é uma delas.

Vera passou parte da infância e da adolescência dentro dessa casa, onde também nasceram os irmãos. A casa ficou na família até a década de 1980, quando foi vendida para um então jovem empresário do ramo de tecidos (veja abaixo).

Vera Assmann Marder lembra das histórias contadas pela avó, Otília (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Mini-hospital

No auge dos seus 88 anos, Clarice Terezinha Leuckert, testemunhou parte dessa história do outro lado da rua, no fim da década de 1930. Também foi na ‘rua grande’ que o pai dela, José Benno Pochmann, e o futuro sogro, Alvino Leuckert, tocavam uma farmácia.

A aposentada (irmã mais velha do falecido médico Walmir Pochmann, que dá nome ao Centro Obstétrico do Hospital São Sebastião Mártir) lembra que o HSSM só foi concluído depois de 1940 e, durante a construção, havia dois locais improvisados para receber doentes. Um deles era na casa dos Assmann e o outro ficava na residência ao lado, que pertencia ao avô materno de Clarice, João Kollet. Este tinha a loja ‘Miscelânea’ (esquina da atual Eletro Armin), que literalmente era uma mistura de coisas à venda: louças, armas, artigos de montaria, joias, instrumentos musicais e metais. Só não tinha tecidos e comida.

Segundo Clarice, era na casa de Kollet que Reynaldo Schmaedecke realizava consultas. “Ele atendia principalmente ali, mas do lado, nos Assmann, também se sabia que era um mini-hospital.”

Curiosidade

José Benno Pochmann (1910-1989), pai de Clarice, era um farmacêutico provisionado, que se especializou em Porto Alegre. Nos primeiros anos da farmácia que tocou com Alvino Leuckert (estabelecimento criado em 1929 e que encerrou as atividades em 2019), ambos ajudaram na construção do hospital atual. Além disso, outra capacidade de Benno foi fundamental: várias vezes era acionado para aplicar as anestesias nos primeiros pacientes do HSSM.

O registro da década de 1940 mostra esquina da atual rua Osvaldo Aranha com Reynaldo Schmaedecke. O terceiro prédio, de baixo para cima, é onde Culi tinha a loja (Foto: Arquivo pessoal)
Médico Reynaldo Schmaedecke, quando tinha cerca de 30 anos (Foto: Arquivo pessoal)

Reynaldo Schmaedecke

Um dos nomes mais conhecidos de Venâncio Aires, o do médico Reynaldo Schmaedecke, também passa pela casa construída em 1917 na rua Osvaldo Aranha. Curiosamente, a história dele no município começa exatamente no mesmo ano.

Schmaedecke, com cerca de 30 anos, troca Feliz (então pertencente a São Sebastião do Caí), por Venâncio. Ele quis mudar de vida, após um grande trauma. “Ele perdeu a esposa, que morreu de tuberculose. Isso foi muito duro para ele, não ter conseguido curá-la. Então mudou de ares”.

O relato é do engenheiro civil aposentado e neto de Reynaldo, Paulo Cesar Schmaedecke, 70 anos. Em Venâncio Aires, nas primeiras duas décadas do século XX, a informação é de que Reynaldo pode ter sido um dos únicos, se não o único, médico atuante.

Por aqui, ele casou com Maria Eugênia, que era da família Pochmann, e o casal teve dois filhos: Clélia e Clécio (pai de Paulo Cesar e que também se tornaria médico). Para o casal, o pai de Eugênia constrói uma casa, por volta de 1918. A residência é bem conhecida dos venâncio-airenses e é o atual prédio da Secretaria de Planejamento e Urbanismo.

Conforme Paulo Cesar, o avô também realizou atendimentos na casa que foi da parteira Assmann. “Tinha quartos com leitos e até uma sala cirúrgica.” Assim, realizando atendimentos de forma improvisada em duas casas na Osvaldo Aranha, a ideia de um hospital ganhou força.

“O vô idealizou, o padre Albino Juchem mobilizou a comunidade e o Emilio Selbach ajudou com a administração no início do hospital São Sebastião”, relata Paulo Cesar. O HSSM foi fundado em 1935, mas Reynaldo Schmaedecke não teve oportunidade de trabalhar dentro dele. Em meados de 1936, quando tinha apenas 50 anos, morreu de infecção generalizada após uma apendicite.

O médico mais próximo que poderia operá-lo não chegou a tempo. Com uma grande enchente que fez transbordar o arroio Castelhano, o médico Pedro Eggler, que trabalhava em Monte Alverne, interior de Santa Cruz, não conseguiu chegar a Venâncio.

A morte prematura causou grande comoção à cidade. Há fotos, inclusive, que mostram a missa de corpo presente lotada, em frente à Igreja Matriz. Além de ter sido um dos primeiros médicos de Venâncio, fez parte da história política da cidade e foi um dos primeiros vereadores, em 1935.

O nome dele é constantemente falado na cidade, afinal, todos os dias, centenas, se não milhares de pessoas, usam uma determinada via que corta o perímetro urbano no sentido leste-oeste. Desde 1965, Dr. Reynaldo Schameadecke é nome de rua em Venâncio.

Culi e os tecidos

“Arys, quer me acompanhar?” A pergunta foi lançada por José Orestes para a irmã mais velha, no fim de 1984. Depois de mais de 20 anos de experiência em vendas atrás do balcão da extinta Casa Brasil (onde Elpídio Fagundes tinha loja de tecidos, na rua Júlio de Castilhos, próximo do antigo cinema), os irmãos decidiram que era hora de arriscar e ter um negócio próprio.

Na coragem de empreender e usando o apelido de infância de José, nasceu a Casa ‘Culi’ Stertz, uma das lojas mais tradicionais de Venâncio Aires e que, por quase três décadas, fez parte da história do prédio construído em 1917.

O empresário, hoje com 71 anos, começou no ramo com apenas 12 anos, em 1962. “Comecei cortando os pacotes de papel pardo para empacotar os tecidos no Elpídio Fagundes.” As irmãs mais velhas de Culi, Arys e Loiva (já falecida), também foram balconistas na Casa Brasil. As décadas atrás do balcão lhes deram muita experiência, a qual, somada à ideia de ter o negócio próprio, fizeram Culi e Arys abrirem a própria loja.

Entre 1985 e 1991, o negócio foi em uma casa menor, um pouco acima do prédio histórico. Mas, com a grande procura e o aumento da clientela, Culi trocou o número 595 pelo 585 na Osvaldo Aranha. Assim, começou a história mais recente dentro da casa que foi da parteira Assmann. “A casa pertencia ao Telmo Marder [pai de Vera, que abre esta matéria]. Tinha quartos nos fundos, que descobrimos depois que foi hospital. Com o tempo fizemos mudanças, para atender as necessidades da loja”, relata Culi Stertz. Segundo o empresário, o ramo dos tecidos evoluiu muito. Para se ter uma ideia, se há algumas décadas eram cerca de 30 tipos, hoje se trabalha com aproximadamente 300.

Culi Stertz, ao lado do filho, Vinícius, já no prédio novo da loja. Empresário ainda mantém as primeiras notas fiscais, de 1985 (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

E o futuro?

Há algumas semanas, quando Culi Stertz efetivou a mudança da loja, muita gente se perguntou: e agora, o que será feito com o prédio? O imóvel pertence ao senhor Armando Pochmann, 90 anos, que revelou que a ideia é vender. Questionado sobre o que ele acha que poderia se fazer no local, Pochmann entende que cabe ao futuro dono. “Quem decide é quem comprar, né? Mas, sinceramente, é um prédio muito antigo, as madeiras estão condenadas, é difícil arrumar. As paredes externas e a fachada é que ainda têm boa condição.”

Nas rodas de conversa, há os que entendem que o prédio, devido à precariedade da estrutura, deveria vir abaixo. Já outros afirmam que parte da construção original deveria ser mantida, como acontece em alguns municípios brasileiros, onde essa questão está determinada em lei.

No Rio de Janeiro, por exemplo, o Legislativo aprovou, em setembro, um projeto de lei sobre o uso de imóveis tombados, permitindo a conversão deles em unidades comerciais. Uma regra é obrigatória: a fachada precisa ser mantida, assim como as características históricas.

Em Venâncio Aires, existe uma lei de 2001 que trata sobre a proteção ao patrimônio cultural do município. Dentro dela, entraria como efetivamente ‘protegido’ (considerando prédios) o que está inscrito no Livro Tombo. Se assim for, apenas o Edifício Storck, construído em 1929, está assegurado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE).

“Sempre é importante a preservação histórica dos prédios antigos, mas objetivamente temos caminhos a percorrer. Poderia ter a criação de um conselho municipal de patrimônio cultural e trabalhar formas efetivas de preservação de bens tombados”, avaliou o prefeito Jarbas da Rosa.

Segundo ele, um fundo para recursos e uma proposta que traga benefícios ao proprietário que pensa em manter ou restaurar um prédio histórico, também seriam alternativas. “Não adianta algo que traga ônus ao proprietário, mas há formas de se pensar benefícios e desconto no IPTU é um exemplo. A discussão é grande, mas é algo bem interessante para evoluir sim.”

Opinião

Sobre ter alguma determinação legal, o presidente da Câmara de Vereadores, Tiago Quintana, também entende que é preciso considerar os dois lados. Para ele, a questão histórica é fundamental, porque contribui para saber as origens. O que não se pode relativizar é o direito à propriedade.

“Sou a favor de preservar a história de maneira que se consiga conciliar o interesse à propriedade privada. Se caso o proprietário não tem interesse, mas o poder público quer impor algo, deveria haver uma desapropriação ou uma recompensa, um incentivo.”

Para a historiadora Angelita da Rosa, muitas das memórias de determinado período da vida passam pela identificação de lugares ou espaços, como é o caso de um prédio ou residência. “Nossa memória tem elos com o que vimos e vivemos, faz parte da nossa identidade. Quando vemos um lugar conhecido, temos aquela sensação de pertencimento. Então ter esses vínculos é fundamental.”

Por outro lado, Angelita também entende que a manutenção desses locais, a partir de uma tombamento, por exemplo, é algo complexo. “Existe o tombamento com ônus e sem ônus, porque ele determina que o ente que tombou algum local, seja o responsável pela manutenção dele caso o proprietário não tenha condições.”

Em Venâncio Aires, o único prédio tombado é o Edifício Storck, que abriga o Museu. O local é mantido pelo Núcleo de Cultura da cidade (Nucva). Segundo o tesoureiro, Flávio Seibt, o restauro do prédio é algo que está projetado há muito tempo e esse sempre foi o desejo. No entanto, a dificuldade está na captação de recursos para custear as melhorias na estrutura física.

Impressões de repórter

Nasci em 1986, portanto, desde que me entendo por gente, sempre me referi a essa casa como ‘o prédio do Culi’. Eu e boa parte dos venâncio-airenses. A fachada com detalhes no alto, a sacadinha, o assoalho com tábuas largas, as portas internas com tramelas centenárias… Ela é do tempo que a rua Osvaldo Aranha se chamava 28 de Setembro e levantava pó ou acumulava barro.

Essas paredes mais velhas que a própria Igreja Matriz e Edifício Storck (ambos de 1929) foram testemunhas da vida de inúmeras gerações e da passagem do tempo em 104 anos. Foi uma grata surpresa descobrir algumas dessas histórias.

Por isso, independente do que seja feito no número 585 da Osvaldo Aranha, o endereço será sempre um pedaço especial na memória de muitas pessoas. E aqui, destaco a opinião da Vera, que gentilmente dividiu suas lembranças e falou da promessa feita pelo antepassados Assmann quando chegaram ao Brasil: guardar e preservar a história da família.

O prédio não pertence mais à família dela, mas Vera deixou uma sugestão: “Se pudesse manter, que seja um pedacinho da fachada, só para preservar algo que é parte da história da cidade também, parte de uma Venâncio Aires que não existe mais. Por que se não tiver espaços que nos fazem lembrar, quem vai, com o tempo, contar a história de um lugar?”



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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